Opinião

As cotas raciais 20 anos depois

A construção de políticas públicas antirracistas no Brasil insere-se num contexto de lutas que paulatinamente fazem com que as desigualdades raciais se tornem um desafio para o Estado

Frei David Santos - Teólogo; diretor-executivo da ONG Educafro
Renato Ferreira - Advogado e mestre em Políticas Públicas
postado em 01/01/2022 00:01 / atualizado em 01/01/2022 14:36
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

No ano de 2001, vivíamos o limiar de transformações sociais importantes por conta da entrada em vigor de uma lei que instituiu o sistema de cotas raciais nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Há nessa história muitos significados. Destacamos alguns. Com as cotas, pela primeira vez, estudantes negros ingressariam de forma significativa no ensino superior, mormente em cursos mais elitistas como direito, medicina e engenharia. Além de tornarem mais democrático o acesso às instituições, as cotas começariam a trazer novo desafio para as políticas públicas brasileiras.

A construção de políticas públicas antirracistas no Brasil insere-se num contexto de lutas que paulatinamente fazem com que as desigualdades raciais se tornem um desafio para o Estado. Nesse contexto, nas últimas décadas, leis foram produzidas, políticas de promoção da igualdade foram criadas e o Supremo Tribunal Federal legitimou esse processo garantindo a constitucionalidade das políticas de cotas. Mas, após 20 anos de todas as tensões que agitaram o início desse período de inclusão racial nas universidades do Rio de Janeiro, o que nos cabe dizer?

Ganhamos todos. É num contexto de avanços democráticos antirracistas que devemos assentar os desdobramentos trazidos pelas politicas de cotas. Os opositores, de um modo geral, foram silenciados pelo próprio caráter inclusivo, redistributivo e democrático que essas políticas trouxeram.

Há problemas? Sim. Fraudes ou tentativas, falta de recursos, um monitoramento mais preciso dos impactos das políticas por todo o país, além de uma articulação entre as instituições e as empresas para otimizar a promoção de talentos ávidos por mais oportunidades. Como em toda política contra-hegemônica que — para se consolidar, sujeita-se aos mais variados tipos de desafios institucionais — o sistema de cotas precisa e pode ser sempre aprimorado.

Os dados que chegam demonstram avanços significativos quanto ao aumento de afrobrasileiros nas universidades. As pesquisas apontam que a população negra, de um modo geral, goza de melhores índices educacionais, mas ainda se mantém atrás da população branca. Nesse sentido, a experiência bem-sucedida das cotas revelou a necessidade de construirmos um sistema de ações afirmativas que contemple um feixe de medidas que vão desde estimular estudantes pobres e negros a ingressarem na graduação, até a pós-graduação e inclusão no mercado de trabalho. Mas quem frequentou as universidades antes das ações afirmativas e volta por lá hoje surpreende-se com o alunado que anda pelos câmpus. O corpo discente está cada vez mais em sintonia com a diversidade que encontramos na sociedade brasileira.

Podemos dizer que as políticas de ação afirmativa deram certo e se estabilizaram de modo inexorável. Esse fato convida-nos a refletir sobre muitos dos desdobramentos positivos. As cotas para pessoas negras, em especial, marcam o fim da ilusão da democracia racial na educação, democratizam um dos espaços mais importantes para a reprodução do poder e do saber, estimulam nossa juventude a vencer na vida por meio do acesso ao conhecimento crítico, contribuem para diversificar nossas elites e ajudam a transformar a vida de milhares de pessoas.

Esse processo, ainda em curso, não está mais relacionado somente à graduação. As cotas são medidas poderosas e foram adotadas em mestrados, doutorados, concursos públicos federais, em muitos estaduais e municipais. Em relação ao mercado de trabalho, elas estão desafiando o silêncio corporativo dos que ainda, equivocadamente, pensam que pode haver compatibilidade entre democracia e desigualdade racial.

Com as cotas, a democratização que o antirracismo promove criou instituições mais justas. Uma verdadeira transformação social vem se consolidando, apesar de todo o retrocesso dos últimos anos.

O Brasil precisa cada vez mais reconhecer para libertar. Consignar o consenso de que estudantes negros e pobres, com o instrumento das cotas, estão mudando a universidade para melhor, e desse modo transformando o país. As ações afirmativas são uma realidade, um fato social potente e democrático, que se desenvolve em diversas áreas, fomentando a cidadania e tornando possível o que antes delas era impensável.

 

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