Opinião

Mariana Gino: De costas para a África

Correio Braziliense
postado em 12/01/2022 06:00

MARIANA GINO - Secretária-geral do Centre International Joseph Ki-Zerbo pour l'Afrique et sa Diaspora/N'an laara an saara (Cijkad)

"A crise não é totalmente da África, mas a crise do mundo em que a África está estruturada." Essa pequena e impactante citação é um dos nortes do pensamento do professor e historiador burkinabe Joseph Ki-Zerbo expressos no livro Para quando a África?, traduzido e publicado pela editora Pallas em 2009.

A obra, que é uma série de entrevistas que o professor Ki-Zerbo concedeu para o historiador René Holenstein, se mostra atualíssima para a compreensão das ações e repercussões mundiais diante das questões e das descobertas da variante ômicron, uma das mutações do coronavírus, que teve o seu primeiro caso confirmado na África do Sul.

Às vésperas do encerramento de novembro, a notícia de que os países europeus e americanos estavam começando a fechar as portas para o desembarque de voos vindos de países africanos diante da descoberta da variante nos deixam minimamente reflexivos com os impactos dos descasos internacionais com os países africanos.

Precisamos aqui rememorar que, no início das descobertas das vacinas para a contenção do vírus, o dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), já chamava a atenção das autoridades globais para a importância de viabilizar a distribuição das vacinas para países que não têm recursos e poder de barganha de compra no mercado internacional.

O doutor Tedros Adhanom já sinalizava para as dimensões globais futuras, uma vez que, sem a imunização, os riscos do surgimento de novas variantes em países com menor possibilidade de compra era cada vez mais iminente. Enquanto países com poder aquisitivo estavam programando a aplicação das doses de reforço na população, menos de 10 % dos africanos haviam sido imunizados, segundo dados da OMS.

Cá do meu canto, ponho-me a refletir sobre a frase do professor Ki-Zerbo pontuando que, mais uma vez, estão virando as costas para o continente africano, ou melhor, para a África negra (Subsaariana), e imputando sobre as autoridades africanas e suas populações as responsabilidade sobre a contenção da variante. Destarte, os países ocidentais, ao promoverem um "fechamento" para o continente, endossam, mais uma vez, as primícias hegelianas sobre o porquê não deveriam voltar os olhos e atenção para a África subsaariana.

No livro Lições sobre a filosofia da história universal, o filósofo alemão, que viveu na Europa entre os século 18 e 19, diz que a África era incapaz de contribuir para a formação e o desenvolvimento mundial, pois "não tem interesse histórico próprio, mas que os homens vivam totalmente na barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum ingrediente à civilização" e por não possuir nenhum tipo de viabilidade de conhecimento para a Europa, pois "a única relação essência que os africanos tiveram — e têm — com os europeus é a escravidão".

Assim, além de perpetuar uma visão reducionista e inferiorizada sobre o continente africano, as ideias hegelianas fazem parte do imaginário social, político e econômico mundial. Ou, por assim dizer, um imaginário construído no Ocidente, que ainda é alimentado pela desumanização e animalização dos povos africanos.

Ora, não podemos deixar de aqui mencionar que os mesmos países ocidentais que hoje estão dando as costas para o continente outrora promoveram um intenso e sistemático processo de colonização, assimilação, inferiorização e assalto das riquezas naturais do continente e das populações. E, como demonstram os fatos históricos, os processos de colonização sobre a África, além de fortalecer as ideias de inferioridades sobre o continente e sobre as pessoas, promoveram uma dominação física, humana, cultural e espiritual.

Como bem gosto de pontuar, a pandemia da covid-19 não ocasionou os abismos sociais e econômicos no continente africano, pelo contrário, ela apenas escancarou a realidade das desigualdades que há muito tempo vêm sendo camufladas pelas autoridades ocidentais. A luta pela erradicação ou amenização dos efeitos e ações do vírus precisa ser um compromisso mundial. Compromisso esse que tem de ser firmado principalmente com os países que ainda vivem sob os impactos dos processos de colonização e descolonização e que possivelmente não vão conseguir promover uma imunização total das populações.

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