OPINIÃO

Artigo: "Sobre ortodoxia e heterodoxia: uma revisão do óbvio"

Correio Braziliense
postado em 15/01/2022 06:00

Por ANDRÉ PERFEITO — Economista-chefe da Necton

Em janeiro de 2019, fui convidado por este Correio a escrever sobre minhas impressões do governo que se iniciava. Naquele momento, havia certo frenesi no ar sobre a revolução liberal que seria colocada em andamento pelo ministro Paulo Guedes e, sobre isso, só pude dizer o óbvio. Sendo Paulo Guedes um homem ortodoxo, ele agiria não no alarde da macroeconomia, mas, antes, no silêncio da microeconomia, logo, exigir dele grandes movimentos ou planos seria um equívoco. Ele iria fazer reformas e tomar medidas que passariam quase despercebidas pela sociedade no intuito de aumentar a produtividade no longo prazo.

Passados três anos, minha intuição estava correta e, de fato, Guedes e equipe fizeram das microrreformas seu cavalo de batalha, atuando de maneira discreta sempre que possível. No entanto, no meio do caminho, tinha uma pandemia, e o que era para ser silencioso se tornou estridente em várias frentes, e um plano de voo previsível se tornou forçosamente tumultuado. Apesar do curto-circuito teórico que ocorreu — é inegável que Guedes e Roberto Campos Neto foram fortemente expansionistas em 2020, o que é contra os princípios gerais de uma política ortodoxa padrão —, o ministro da Economia se manteve fiel ao seu campo teórico e tem entregado resultados fiscais positivos graças ao golpe de sorte de a inflação ter impulsionado as receitas, mas é forçoso reconhecer que Guedes cortou onde pôde, segurando as despesas.

A despeito dos esforços liberais de Guedes, muitos economistas do próprio campo teórico têm atacado frontalmente —, às vezes, de forma até deselegante — o czar ortodoxo da economia brasileira, acusando-o de não ser liberal o suficiente. O tamanho do mal-entendido é tão grande, que Guedes disse, num evento, em tom de desabafo, que "os economistas brasileiros têm treinamento deficiente em equilíbrio geral".

Acredito que seja útil resgatar, mais uma vez, o óbvio do que se trata um ajuste liberal/ortodoxo na perspectiva que eu possa, de maneira tímida e incompleta, contribuir para o debate econômico neste ano eleitoral e ajudar na difícil tarefa que temos pela frente.

Grosso modo, existem dois tipos de economistas: os ortodoxos são identificados com ajustes do lado da oferta, já os heterodoxos privilegiam a demanda. Um economista heterodoxo puxa a demanda no curto prazo de tal sorte que os empresários vendam mais e, com vendas em alta, ocupem sua capacidade ociosa até o limite e, assim, se vejam forçados a investir para ampliar a oferta, criando as bases do crescimento de longo prazo. Já um economista ortodoxo faz o ajuste pelo lado da oferta, cortando custos e/ou simplificando processos de tal sorte que, uma vez que os custos caiam, a margem de lucro suba e, assim, o empresário invista.

O ajuste heterodoxo atua no curto prazo, para tentar elevar o investimento via demanda em alta. O ajuste ortodoxo age diretamente na função de investimento, ao atacar os custos, e isso tem efeitos não no curto prazo, mas no longo prazo, ou seja, quando o empresário investe e gera demanda nova. Aqui, temos a primeira lição útil sobre a teoria econômica liberal: é simplesmente um contrassenso teórico exigir de um ajuste ortodoxo crescimento no curto prazo. Não é assim que funciona.

Economistas ortodoxos acusam os economistas heterodoxos de populistas ao puxarem "artificialmente" o consumo, criando voos de galinha na economia brasileira. O ajuste liberal, necessariamente, passa por uma depressão da demanda no curto prazo para diminuir custos ou para liberar recursos para a iniciativa privada que, apenas num segundo momento, vai colocá-los em movimento. Busca-se um rearranjo da economia, e isso só ocorre no longo prazo.

Nesse sentido, acusar Guedes de não ter sido liberal o suficiente pode não ser uma crítica correta para quem gostaria de ver a economia crescer mais no curto prazo. Claro, as críticas não se concentram apenas na atividade frágil, muitos questionam seu comprometimento com as reformas e privatizações, mas, nesse caso, apenas um economista incauto para acreditar que se pode fazer tudo que quer na economia. Um ajuste ortodoxo, geralmente, tem custos políticos elevados, uma vez que reprime a demanda, necessitando de políticos determinados para fazer o ajuste ou regimes autoritários.

No fundo, Guedes deu azar. A pandemia gerou uma crise que poderia ajudar na reorganização do tecido econômico (basta ver a exponencial digitalização que ocorreu), mas a recessão foi acompanhada por uma severa inflação de oferta, que fez os custos subirem, reprimindo a função de investimento.

Cabe agora questionar qual das políticas sairá vencedora do pleito de 2022 e avaliar os efeitos que pode criar na economia. De certa forma, o próximo presidente vai pegar o Brasil com um longo prazo mais arrumado, cabe agora saber como chegaremos a esse futuro.

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