Artigo

Está difícil

Correio Braziliense
postado em 23/01/2022 06:00

MARISTELA BERNARDO - Jornalista e socióloga

Mal chegou e 2022 anuncia que não será fácil. O rebote da pandemia não é o único problema. A questão central está na incapacidade de encararmos a vida pessoal, o país e o mundo fora dos parâmetros que nos guiavam há tão pouco tempo — meros dois anos e pouco — e pareciam sólidos. No início da pandemia, muitos profetizavam que nada seria como antes. Outros antiprofetizavam: vai mudar nada, ficará tudo na mesma. Referiam-se à dinâmica básica do mundo. Quem pode se livrará das piores consequências e ainda vai lucrar com isso; quem nada pode e sempre perde continuará perdendo e pagará a grande conta do desespero, das mortes e do empobrecimento.

De certa forma, ambos tinham razão. O último relatório da Oxfam sobre a desigualdade no mundo mostra que as 10 pessoas mais ricas dobraram a fortuna coletiva desde março de 2020. Entre eles nomes conhecidos como Bezos (Amazon), Musk (Tesla), Gates (Microsoft), Zuckerberger (Facebook), família Arnault (LVMH, maior empresa de artigos de luxo do mundo). Juntos cresceram de R$ 3,8 trilhões para R$ 8,3 trilhões. Na outra ponta, a renda dos mais pobres despencou e 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza.

E na população mundial, 99% estão, de alguma forma, em pior situação devido ao impacto da pandemia nas atividades econômicas de todo porte. Milhares de mortes não estão vinculadas diretamente à covid, mas à penúria, à destruição de condições de vida, ao desamparo frente à doença. Basta ver a situação da África. No final de 2021, apenas 7% dos africanos tinham a vacinação completa, por inúmeras razões, a começar da prioridade absoluta dada aos países ricos na distribuição de vacinas e da inexistência de sistema eficiente de vacinação (viva o SUS!) combinada com entrega de doses próximas do vencimento etc.

Impossível saber quantos morreram na África sem sequer constarem das estatísticas. Um retrato lamentável e realista da humanidade e das várias camadas em que ela se organiza, fazendo com que a vida individual seja valorizada conforme regras muito desiguais, injustas, a partir de critérios econômicos e geopolíticos. É isso e ponto. Não exijam mais desta civilização embrutecida, movida a dinheiro, deslumbramento, carente de compaixão e empatia, farta em crueldade e ignorância. O mundo pós-pandemia, a nossa vida pós-pandemia tem que ser encarados com maior complexidade do que apenas vencer o vírus. De certa forma, o coronavírus é nosso menor problema. O pesadelo é o mundo em que ele surgiu, com sua precariedade humana, seus valores assustadores, sua lógica mortal.

Todos os países, instituições e pessoas tiveram que encarar o derretimento de seus espaços históricos de resolução de problemas. O caos virou rotina. O trauma banalizou-se. Abrir e fechar as portas de casa, da mobilidade, do contato social virou habilidade importante. Os protocolos do cotidiano sofreram grande mudança estrutural, não em seus conteúdos, mas na metodologia, na tecnologia, na capacidade de trocas rápidas, não programadas. Aí, sim, nada está sendo como antes. Por meio da disseminação recorde de informações, sabemos que a estabilidade das sociedades humanas pode ser severamente abalada por um simples vírus, e isso será cada vez mais frequente e letal, pois persistem os desatinos ambientais, as desigualdades e as assimetrias de todo tipo, barreiras para a solidariedade radical que uma situação limítrofe exige.

As ciências sociais e políticas devem estar tendo muito trabalho para desatar o nó do presente, para entender, com as ferramentas tradicionais de pesquisa e análise, as conexões que se refazem e multiplicam como praga no campo. Ou como vírus... Para clarear o caminho, impõe-se inovar, questionar certezas acadêmicas e individuais. Como voltar a fazer planos? Quem ousaria planejar até mesmo as próximas férias? A estratégia é estar alerta para qualquer surpresa e isso exige requalificar disposições e desejos, estabelecer mediações diferentes para navegar na tormenta. O principal instrumento nessa travessia será, sem dúvida, parar de achar que se pode "cuidar da própria vida".

Ou enxergamos todos ou não há saída. Isso começa pela redescoberta do conhecimento. Saber garimpar, testar e comprovar informações, de modo a poder escolher, decidir, juntar as pontas. Vale para fazer a lista de supermercado ou para a escolha de um presidente da República. Há a esperança de um cidadão pós-pandemia, que dê à existência um sentido além de consumir, que se junte às correntes que apregoam mudanças civilizatórias humanistas e agregadoras. Ou seja, precisamos recuperar a potência de pensar livremente e agir segundo a consciência e a ética. É uma tarefa fantástica, o pensar. Pode mudar muito, pode mudar tudo. Apesar das dores e dificuldades, seja bem-vindo, 2022. Há muito o que fazer.

 

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