Opinião

As instituições têm de estar preparadas para impedir estupros

RENATA GIL - Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

O acordo firmado pela Federação de Ginástica e o Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos com vítimas dos abusos sexuais de Lawrence G. Nassar — ex-médico da equipe nacional feminina de ginástica do país — estabelece um paradigma histórico, que deve ser assimilado em todo o mundo: por meio da constituição de ouvidorias internas e da adoção de mecanismos de proteção, as instituições precisam se preparar para impedir o cometimento de crimes sexuais.

As cifras do acerto, que prevê o pagamento de indenização a cerca de 500 mulheres atacadas por Laurence G. Nassar, chegam a U$ 380 milhões. Entre as sobreviventes, há medalhistas olímpicas como Aly Raisman, McKayla Maroney e Simone Biles. Muitas relatam vários problemas de saúde mental — transtorno de estresse pós-traumático, depressão e ansiedade — decorrentes dos episódios de violência, que não foram poucos. É tão grave o quadro, que algumas chegaram à atitude mais extrema: atentar contra a própria vida.

Laurence G. Nassar está preso e assim há de permanecer. O ressarcimento monetário, embora não repare os incontáveis danos causados, mais do que uma compensação, representa o estabelecimento de uma premissa: as empresas — tal qual o poder público ou quaisquer organizações — não podem, por ação ou inação, concorrer para a perpetração de estupros.

O agressor nunca age sozinho. Ele se beneficia de uma rede de salvaguarda que, apesar de informal, efetiva-se pelo descaso. Não é por outra razão que a dívida milionária recairá sobre a Federação de Ginástica e o Comitê Olímpico e Paralímpico norte-americanos: ambos falharam gravemente ao não proteger a integridade das atletas ou oferecer o suporte necessário no momento das denúncias. Que as perdas financeiras imponham novas políticas e procedimentos internos capazes de prevenir a repetição e a perpetuação do erro.

No Brasil, a realidade não é diferente. A imprensa reportou casos que se deram de modo similar, na mesma modalidade esportiva, inclusive. Avolumam-se os relatos de violência sexual praticada por gente que desfruta de um aparato convencional de apoio, de templos religiosos a hospitais — sem contar as inúmeras ocorrências em ambientes privados, como bares, boates e locais de festa.

A verdade é que a delinquência sexual não pode ser debitada apenas na conta do abusador. Por que, tendo a oportunidade de barrar as investidas, muitas entidades permanecem inertes? Partícipes ainda que indiretas do ultraje, devem ser intimadas a agir por uma questão de disseminação do exemplo: para que outras mulheres jamais sofram os mesmos assédios.

As corporações, independentemente de sua natureza e seus objetivos estratégicos, necessitam estar atentas às transgressões efetuadas sob seus domínios. Essa é a única forma de mobilizar o conjunto da sociedade para a resolução de um problema que não diz respeito somente àquelas que padeceram a agressão na pele, mas a todas nós, que um dia poderemos enfrentar circunstâncias semelhantes — ou nossas filhas, mães e irmãs.

Registraram-se grandes avanços nos últimos anos. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) é a pedra angular da mudança de mentalidade que permitiu inovações igualmente importantes, como a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015) e a Lei do Sinal Vermelho (Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021), que incentiva mulheres a pedir socorro por meio de um "X" na palma da mão. Eis os dispositivos de proteção legal que colocam o Brasil na vanguarda do campo legislativo mundial.

Agora, chegou o momento de dar mais um passo em direção ao fim da violência de gênero. É hora de as instituições criarem órgãos internos, como ouvidorias, capazes de, além de apurar as denúncias de violação, implementar práticas que propiciem um ambiente seguro para as mulheres e aqueles que estejam em situação de vulnerabilidade. A magistratura está pronta para dar a sua contribuição. O que não podemos fazer é cruzar os braços, sob pena de o futuro nos cobrar, com juros, a fatura da omissão.