Opinião

Artigo: Gestão da população que vive nas ruas

Correio Braziliense
postado em 03/02/2022 06:00

FILIPE SABARÁ - Empresário, filantropo e palestrante

Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Assim, inicia-se a obra A metamorfose (1975), de Franz Kafka, retratando um bicho simbólico, a imagem interior de si mesmo. Uma metáfora da humilhação de um homem submisso, que aceitou se transformar em alguém que não queria ser. Da mesma forma, na sociedade, é possível encontrar esses tipos metafóricos espalhados pelas ruas em situação de miséria absoluta. Pessoas excluídas socioeconomicamente, ignoradas e vistas como parasitas pela comunidade, marcadas por desigualdades sociais, que terminam por encontrar meios de sobrevivência, comida e segurança somente nas ruas.

O contingente de pessoas em situação de rua é maior do que o número de habitantes da maioria das cidades do estado de São Paulo. Segundo o novo Censo da Prefeitura, divulgado poucos dias antes de a cidade completar 468 anos, são quase 32 mil pessoas nas ruas, contando apenas quem pernoita ao relento, com crescimento de mais de 31% em relação a 2019. Mas, se levarmos em consideração os que ficam o tempo todo na rua, o aumento registrado pelo censo é ainda maior: 54%.

São vários os motivos que levam uma grande parcela de indivíduos a morar nas ruas. Há a questão do desemprego, das drogas, da instabilidade familiar. Mas, independentemente da razão que arrasta essas pessoas a caírem no nível mais extremo da pobreza, o fato é que sair dela ainda é mais difícil. Acabam sendo rotuladas de perigosas ou inoportunas, quando muito invisíveis para a sociedade. Só "existem" perante os olhos da população economicamente ativa em momentos como esse, catapultadas por uma estatística.

Esse sentimento do senso comum tem propiciado que parte das políticas oriundas do poder público voltadas para a populações em situação de rua sejam da alçada da segurança pública. Portanto, a criminalização de comportamentos e a repressão acabam justificando-se na busca por higienização e segregação social. Tal comportamento, ao longo dos anos, abriu espaço para que organizações da sociedade civil assumissem propostas solidárias de atendimento; no entanto, em muitos casos, de cunho apenas assistencialista. São necessárias, obviamente, mas ainda distanciadas da noção de política pública, como direito dos cidadãos e dever do Estado.

Pode-se dizer que parte do problema de moradia das pessoas que vivem nas ruas está relacionada com o deficit habitacional existente nas grandes cidades do país. Estariam na condição de "sem-teto", como outros tantos milhares de brasileiros. No entanto, isso se torna uma verdade parcial à medida que as razões que contribuem para a situação de rua não estão apenas relacionadas com a ausência de moradia. A possibilidade efetiva de saída da rua não se restringe à oferta isolada de moradia.

Assim, como os temas clássicos de interesse da população em geral, trabalho, moradia e saúde são questões também latentes para os moradores de rua, ainda que em circunstâncias particulares. E, face às mudanças contemporâneas do mundo do trabalho, poucas alternativas produtivas restam para a população que sobrevive das ruas. No entanto, embora empregos formais praticamente não existam e subempregos sejam esporádicos, observa-se que a rua ainda é a alternativa de busca de sobrevivência para uma parcela significativa da população.

Em todas as oportunidades em que são abordadas, em pesquisas ou em situação de atendimento, as pessoas que vivem na rua revelam que sua principal demanda é a questão da geração de alternativas de ocupação e renda. Tal desejo, geralmente expressado como a necessidade de um emprego que seria o caminho para a saída da rua, não tem muita condição de se tornar realidade, diante da fragilidade da condição pessoal decorrente da situação em que ela se encontra.

Cumprir horários, não usar álcool e drogas, apresentar-se adequadamente, readquirir a condição de planejamento de despesas dentro de um mês, são desafios que não estão ao alcance de quem está na rua há algum tempo. Ainda assim, a necessidade de viabilizar alternativas de geração de renda para esse público é uma das principais tarefas a ser enfrentada na atualidade, não só pelo poder público, nas três esferas de governo, mas pela sociedade em geral. Nesse campo reside a possibilidade de que as pessoas que vivem em situação de rua venham a adquirir a sua autonomia.

Percebo na prática o quanto a questão do emprego é transformadora para essa parcela da sociedade. Na Associação de Resgate à Cidadania por Amor à Humanidade (Arcah), da qual sou fundador, temos desenvolvido políticas para criar oportunidades reais para gerar autonomia financeira para pessoas acolhidas das ruas. Questões que podem parecer simples são passos grandiosos que realmente fazem a diferença. Um dos alunos da Arcach, que atualmente segue empregado numa horta social do projeto, certa vez comentou: "Eu mostro meu documento até quando não me pedem. Há anos, transitava entre os invisíveis, mas passou a ser percebido. Vê nessa atitude uma referência de que realmente adquiriu um passaporte de volta à sociedade economicamente ativa do nosso país.

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