Quando Jair Bolsonaro passar — sim, ele vai passar, apesar da intensa dor que ainda trará —, muitos farão do "não" a palavra mais pronunciada. "Não, eu não sabia. Não, eu não concordava. Não, eu não aceitava. Não, eu não vi. Não, eu não gostei".
Guardem: usarão estas expressões para se justificarem e, em muitos casos, se salvarem. Sobreviverem, numa outra única palavra.
Tais expressões foram as mais usadas pelos nazistas e fascistas depois da Segunda Guerra Mundial. Queriam de alguma forma se afastar do horror que viram e, em muitos casos, participaram e aplaudiram. Muitos se disseram arrependidos, que foram arrastados por um tsunami que lhes turvou os sentidos. Alegaram cegueira, mas que, agora, passada a tormenta, voltavam a enxergar. Aleluia, graças a Deus a clareza.
Tudo falsidade, tudo mentira, tudo cretinice. Enquanto a maré lhes ajudava, riam e engordavam às custas da dor alheia, da indiferença ao sofrimento.
Nesse momento é que a natureza humana perigosamente se manifesta: ora, ele era fascista, era nazista, mas não era tão mau assim. Está regenerado! Está disposto a pagar pelos pecados que cometeu.
Os vencedores, com o pragmatismo típico das sociedades que esquecem rápido dos soldados mortos, os adotaram. Vários ex-fascistas e ex-nazistas (ex?) desembarcaram nos Estados Unidos, na então União Soviética, na Inglaterra — e mesmo muitos "colabô" franceses foram incorporados ao regime de De Gaulle —, para dar sua contribuição à liberdade trazida pela nova ordem.
O mesmo acontecerá depois de Bolsonaro. Dirão que participaram, sim, do atual governo porque acreditavam no liberalismo econômico, nos projetos, e até concordavam com alguns conceitos, mas rejeitavam os deboches, os palavrões, as mentiras, as mãozinhas colocadas em forma de arma. Negarão, como Pedro negou Jesus, sem a beleza dramática do quadro de Caravaggio. Serão apenas cínicos.
Quem são eles? Militares, ministros "técnicos", parlamentares embarcados no grande navio de cruzeiro batizado de "orçamento secreto". E proporão ao novo governante duas agradáveis alternativas: o doce esquecimento ou as mangas arregaçadas para, juntos, trabalharem pelo futuro do Brasil. Isto será aceito? Temo que, em nome da chamada "realpolitik", sim.
"Piores são os ideológicos", lembrarão uns; "esses não têm jeito, a não ser mantê-los isolados", dirão, ainda, outros com algum traço de lucidez. Mais ou menos, não tenham tanta ingenuidade assim. Dependendo de onde estiverem, poderão ser reaproveitados, reciclados até. Claro que isso não acontecerá com todos, pois muitos já carregam uma mancha na alma que nada será capaz de remover — esses, a menos que se imolem em praça pública, levarão a vergonha até o final da existência.
Depois que Bolsonaro passar, quando retomarmos o caminho da civilização, não assistiremos nas ruas desfiles de figuras marcadas com tinta preta e a cabeça raspada — isso nos fará ainda mais bárbaros. Mas ouviremos e assistiremos o "não" brotar fácil da boca mole de abjetos personagens.
"Não, eu não sabia. Não, eu não concordava. Não, eu não aceitava. Não, eu não vi. Não, eu não gostei", repetirão. Pura insinceridade.
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