Guerra no leste europeu

Ucrânia: é preciso refletir sobre erros do passado e do presente para salvar o futuro

Correio Braziliense
postado em 02/03/2022 06:00
 (crédito: Maurenilson Freire)
(crédito: Maurenilson Freire)

Juliano da Silva Cortinhas - Professor de relações internacionais da UnB e professor visitante na Universidade da Virginia (EUA), onde atua com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

A invasão da Rússia à Ucrânia é, até o momento, a etapa mais importante de um longo processo iniciado há algumas décadas. Trata-se de um episódio que somente ocorreu por uma combinação complexa de fatores que, se não forem compreendidos, deixarão de gerar lições para que a paz seja reconstruída rapidamente e de modo duradouro. Entre as várias causas do conflito, três são mais relevantes, sendo duas estruturais e uma conjuntural.

A primeira é mais profunda, pois se refere ao reequilíbrio entre as grandes potências. Os Estados Unidos (EUA) vêm perdendo poder relativamente à Rússia e à China. Suas incursões imperialistas mal calculadas em várias regiões do mundo, uma sucessão de crises econômicas e os diversos problemas em seu sistema democrático minimizaram sua capacidade de liderar. Em paralelo, China e Rússia vêm aumentando seu poder relativo, a primeira com base em grande crescimento econômico, que permitiu a construção de um aparato de defesa moderno, e a segunda por meio da manutenção da forte capacidade militar e do crescimento econômico por meio exportação de commodities, o que tornou boa parte da Europa dependente dela.

A segunda causa estrutural é a ampliação excessiva da Organização do Atlântico Norte (Otan) em direção ao leste. Muitos ícones do chamado "realismo", uma das correntes mais difundidas das relações internacionais, avisaram sobre os riscos dessa expansão. John Mearsheimer, Henry Kissinger e George Kennan, entre outros, apontaram que era uma postura inadequada. Vídeos e artigos deles prevendo a possibilidade de uma reação russa viralizaram na internet nos últimos dias.

Além das causas estruturais, há uma mais específica. A Rússia é comandada por um líder imperialista, autoritário e hábil. Putin é um estrategista político e militar competente, que se mantém no poder em um cenário político extremamente complexo há mais de 20 anos. Essa capacidade lhe dá, na conjuntura atual, certa vantagem em relação a líderes de países democráticos que passam por processos de revisão de suas políticas a cada eleição.

Em princípio, parece natural apontar que quaisquer conflitos que envolvam grandes potências sejam fenômenos multicausais. Apesar disso, a velocidade dos tempos atuais, o excesso de informações, a soberba e o despreparo está levando líderes de ambos os lados a não compreender a complexidade da situação. Preferem, ao contrário, visões maniqueístas em que o lado de quem dá o discurso procura o bem, enquanto o mal está no opositor. O resultado é uma baixa capacidade de compreensão mútua, o que vem sendo agravado porque muitos analistas têm repetido acriticamente o discurso de seu lado preferido.

Para os analistas, a prática é ruim porque impede a produção de explicações corretas sobre a guerra. O maniqueísmo dos governantes, porém, produz resultado muito pior: o escalonamento do conflito. O Ocidente está isolando os russos, impondo sanções inéditas, enquanto Putin amplia a violência de suas ações militares, faz ameaças nucleares e se fecha ainda mais. A lógica afasta a possibilidade de que soluções rápidas sejam encontradas, produzindo montanhas de corpos, migrações em massa, miséria e fome. Para além do risco climático, da pandemia e de outras ameaças à sobrevivência da humanidade, agora estamos diante do risco de uma catástrofe nuclear.

A boa notícia é que há luz no fim do túnel, mas a saída passa por uma mudança profunda de postura. A chance para o diálogo ainda existe, principalmente porque a decisão de Putin de invadir a Ucrânia tem se mostrado grave erro político e militar, que vem colocando seu próprio cargo em risco. As sanções severas à Rússia também trarão prejuízos severos à Europa e não levarão à retirada militar, ao menos no curto prazo. Ninguém está confortável, ou seja, há potencial para que todos aceitem uma negociação que encerre a situação.

A possibilidade só se concretizará, porém, se o Ocidente reconhecer seus próprios erros e o status da Rússia como grande potência: o comportamento imperialista atual de Putin é tão inaceitável quanto ações imperialistas que os EUA, por exemplo, tiveram ao longo de sua história. Somente uma negociação equilibrada pode proporcionar uma solução, que passa pela construção de uma neutralidade à Ucrânia. Isso exigirá a retirada total das tropas russas e a garantia concreta de que o país não será incluído na Otan ou na União Europeia. Ou ambos os lados cedem em breve, ou o futuro da humanidade estará ainda mais ameaçado.

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