revolução digital

Análise: Os abusos de poder regulatório no fretamento colaborativo

Gustavo Justino de Oliveira - Professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP

A revolução digital impacta e prosseguirá impactando as relações sociais, os negócios privados, os meios de produção e diversos outros aspectos existenciais da humanidade.

O Estado, em sua forma de organização, sofre influxos constantes da propagação e do uso das novas tecnologias digitais, gerando desafios enormes para a implantação do governo digital, da administração pública eletrônica, assimilação necessária das plataformas digitais para intermediação de serviços prestados ao público no cenário disruptivo de "economia compartilhada", relações negociais com startups e govtechs, e assim por diante.

No mundo pós-pandemia, tratar de inovação tecnológica não pode mais significar enfrentar o tema de modo extravagante ou excepcional: o mindset do setor público como um todo foi profunda e definitivamente modificado frente aos impasses e dilemas que a era digital promove no trato do serviço público.

A disparidade no trato estatal da inovação tecnológica, em conjunto com eventuais renitências na incorporação ou (o que seria pior) o não reconhecimento da tecnologia em si pelo Estado brasileiro, acaba por produzir graves assimetrias regulatórias, as quais, acabam por gerar perfis regulatórios abertamente disfuncionais, inúmeras vezes desalinhados e anacrônicos, frente a atividades ou serviços intrinsecamente similares ou dotados de regime jurídicos semelhantes.

O antídoto para esses abusos e assimetrias regulatórias é adentrarmos em uma nova onda regulatória que contemple a necessária predominância da "regulação digital".

Um exemplo notório de setor que necessita urgentemente ser abraçado pela "regulação digital" é o do setor de fretamento colaborativo, cujo maior expoente é a Buser, startup que adota um modelo de negócios livremente conhecido como o "Uber de ônibus".

A Buser atua em parceria com empresas que possuem autorização de transporte rodoviário fretado (e não para transporte rodoviário regular). Em suas plataformas digitais, a Buser oferece, ao público em geral, a possibilidade de conexão entre empresas prestadoras de serviços de transporte coletivo e interessados no fechamento de grupos e rateio do frete para diversas localidades.

O serviço, materialmente, se assemelha ao transporte coletivo rodoviário regular, porém, juridicamente está qualificado como transporte fretado. Essa arquitetura jurídica tem seu complicador: a identidade material entre os serviços oferecidos é, na maioria das vezes, erroneamente compreendida e qualificada por agentes tradicionais do mercado e agências reguladoras do setor como sendo uma prática de atuação indevida da Buser.

Os problemas regulatórios e judiciais que acometem empresas como a Buser decorrem de enviesada compreensão de suas atividades pelas entidades reguladoras e tradicionais delegatárias do serviço de transporte coletivo rodoviário de passageiros. Esses agentes interpretam a prestação desses serviços como transporte irregular, pois haveria uma identidade material com a atividade, a qual se atribui o regime jurídico de serviço público, o transporte coletivo rodoviário regular de passageiros interestadual e internacional, o qual demandaria concessão ou permissão para sua devida delegação ao particular.

A rigor, o que se deve atentar é que a sua configuração formal dentro do setor na qual está situada, conjugada com os contornos que o incremento tecnológico proporciona à atividade exercida, talvez devesse levar a atividade da Buser a ser considerada, tal qual o Uber, serviço de interesse econômico geral.

Um dos aspectos que faz vislumbrar o encaixe conceitual desta figura em relação à Buser é o fato de os serviços econômicos de interesse geral fugirem a certas características mais rígidas do serviço público. Tal conceito parece servir de referencial dogmático para esclarecer os pontos cegos de regimes jurídicos nos quais empresas como a Buser acabam se inserindo.

Cabe destacar duas manifestações de poderes públicos estaduais. Em primeiro lugar, o estado de Minas Gerais regulou a sua prática no âmbito do transporte intermunicipal dentro de seus limites territoriais; esse é um caso emblemático à medida que existe discussão em sede de ação direta de inconstitucionalidade, no âmbito do TJMG, questionando a constitucionalidade da norma, a qual levou a restrições ao ambiente desregulamentado antes existente — o próprio Governador do Estado de Minas Gerais posicionou-se contrariamente à regulação. No estado de São Paulo, por sua vez, o TJSP reconheceu a validade, no âmbito estadual, da atividade.

Conclui-se sustentando que, na seara da inter-relação entre regulação estatal e inovação tecnológica, não se esperam do órgão regulador posturas que rivalizem pura e simplesmente "inovação" e "regulação".

O que deve ser evitado são posturas regulatórias que impinjam adversidades e restrições desproporcionais aos players do setor regulado, que tenham origem em um olhar enviesado ou inadequado da atividade sobre a qual incida a regulação, sobretudo quando tal atividade é estimulada ou intermediada por inovações de cunho tecnológico.

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