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Artigo: Um quilombo na tevê

Correio Braziliense
postado em 14/05/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

WALESKA BARBOSA - Jornalista, escritora e apresentadora do Quilombo de Wal (TV Comunitária de Brasília, canal 12)

"Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje." Conheci o ditado pelo documentário AmarElo, de Emicida. Desde então, ele me serve de apoio para entender algo que pressentia sobre o tempo. Assim, aos 46 anos, jornalista há 22, eu me vejo em outro lugar que não o texto escrito, em jornais, sites, livros. E só agora entendo como cheguei a uma emissora de televisão.

Eu posso falar sobre a experiência sob diversas óticas. Puxando ganchos, para usar um termo jornalístico, que poderiam vir de navio atravessando o Atlântico. Vir a pé descendo a ladeira com balaios na cabeça. Vir de camburão e, antes de descer, levar tiro na nuca sob a alegação de auto de resistência. Vir em silêncio — tal qual Anastácia e sua máscara de ferro. Ou vir soando alto em atabaques e tambores.

Mas, eu puxo um gancho meu mesmo. Talvez da rede no terraço da casa que ocupamos no bairro de Bodocongó, onde cresci, em Campina Grande/PB. Foi ali que assisti à tevê quando criança. E foi esse tempo que evoquei quando quis conhecer o percurso da pedra lançada.

Em quem eu poderia me inspirar como entrevistadora preta? Naquele tempo eu assistia a TV Mulher — dali lembro de Marília Gabriela, Marta Suplicy. Segui vendo Leda Nagle encerrar o Jornal Hoje, aos sábados, com entrevistas antológicas. Ainda que eu cite mulheres, e ainda bem que posso fazê-lo, as que há não posso chamar por nenhum nome quando eu quero encontrar meu referencial de mulher negra comandando um microfone, no lugar de apresentadora ou entrevistadora. Naqueles tempos idos.

Não me refiro a bancadas ou sofás atentos e preocupados com a diversidade, com o cumprimento de uma ação afirmativa que represente ao menos a controversa cota, vá lá. Eu sou a que chamou um quilombo. Para que nossas mãos e corpos e valentias pudessem desbravar o mato alto do espaço fechado das televisões. E, lá de dentro, como se embrenhadas na Serra da Barriga, bradássemos nossa resistência. Deixássemos à mostra nossa existência. Um Quilombo de Wal. Não para se esconder, como disse Lourdes Teodoro, mas para se (a)mostrar.

E eu, que, com sotaque paraibano, como se chegara ontem a esta cidade Brasília, o "s" meio sibilante, o corpo-preto-território, a total inexperiência com este meio de comunicação, aceitei a sugestão/pergunta: Por que você não faz um programa na TV Comunitária?

Recebida por Paulo Miranda, presidente da entidade, obtive o sim. Algumas instruções. Os horários vagos na segunda-feira disponível (optei por aquele que permitiria buscar minha filha na aula da tarde). E foi tudo o que soube antes. E durante. Sem treino. Sem piloto. Sem ensaio. Sem experiências anteriores. Com uma estrutura mínima (mas pública e disponível), nenhum dinheiro e o sentimento de me sentar em estúdio americano ou global mesmo e me sentir apta, grande, gigante. Praticamente uma Oprah Winfrey das paragens daqui.

Contando com dois ou três amigos voluntários e algumas tantas pessoas que me serviram de conselheiras, segui para a estreia. Coração aos pulos. Errei o caminho, cheguei atrasada, ouvi reprimenda, cumprimentei a entrevistada, dei de cara com Luazi Luango montando o cenário (um dos que segue comigo na empreitada), me sentei em uma cadeira, recebi uma aula sobre o posicionamento das três câmeras do estúdio. Cruzei as pernas, peguei minhas folhas de papel, minhas anotações mal organizadas, ouvi uma contagem regressiva e entrei ao vivo, sem saber bem para onde olhar, que sorriso abrir e como sairiam as primeiras palavras. Ao meu lado, uma das mulheres negras mais importantes para o debate da questão racial de Brasília e do Brasil, Lourdes Teodoro.

Do outro lado de um vidro que nos separava da equipe técnica, eu via subir, quando em vez, um papel. Dez. cinco. Três. Um. Encerrar. Trinta minutos haviam se passado e eu não tinha noção de como havia conduzido ou havia sido conduzida por aquele encontro. Deixei-me ser avaliada. Acolhi a mim mesma e me achei corajosa que só por ter aceito a pergunta/sugestão. Por ser, para quem procurar, a entrevistadora preta que não achei na minha infância. Por cumprir a missão. E até pelo ímpeto de desistir, de não ir, de desinventar essa história.

Mas estou lá. No papel desnudo de ser uma mulher preta que gosta de ouvir e aprender com outras mulheres, outras gentes pretas. Ser a entrevistadora delas. Aprender fazendo. Só porque eu sou jornalista, afinal. Só porque eu acredito na comunicação, devo admitir. Só porque fico feliz de deixar que digam, que pensem, que falem. As nossas vozes. Aos nossos ouvidos.

 

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