Artigo

Ana Dubeux: Vou ali em Compostela

Ao caminhar, nos desfazemos. As camadas que somos e temos vão ficando pelo caminho para, em seguida, criarmos novas. Falo das roupas, que se sobrepõem, para lidarmos com frio e calor. Mas falo também das cascas que vão se acumulando sobre a nossa jornada de vida e que precisam se renovar. No Caminho de Santiago, somos novidade a cada instante.

Cheguei na primavera para vencer os 21 quilômetros diários de uma travessia que começou há alguns anos, quando tudo era sonho e planos na gaveta. Depois, era uma rotina de treinos, uma pandemia como obstáculo, uma lesão e outros pequenos sustos para tornar a espera mais duvidosa e emocionada. Mas eis que estou aqui. Porque simplesmente não poderia estar em outro lugar.

Planejar não é nada perto de vivenciar. A gente sabe disso no primeiro passo e não esquece nunca mais. É uma travessia doída e cansativa, mas de uma beleza extraordinária. A resiliência, a mochila pesada, o cajado, as flores lindas e as paisagens tão majestosas pelo caminho, as companhias de jornada, os jovens e os velhos na mesma estrada, levando sua vontade, sua experiência, sua expectativa. Ao caminhar, tudo vira só o caminho.

Já são quatro dias quando escrevo e muitos ainda tenho pela frente. Na verdade são quatro dias a menos, nada para quem esperou tanto. E sei que daqui a pouco, já vou querer estar no começo novamente. Santiago nem passou e já vai deixando saudade. Cada passo é aprendizado, pedaço de sonho realizado.

A gente aprende nessa longa jornada, já no comecinho, a só levar o necessário, aquilo que cabe na mochila. Entendemos, então, que precisamos de muito pouco para seguir. Uma metáfora intrigante da vida, não é? Afinal, também é assim na existência. No fundo, precisamos de muito pouco. Água, comida, abrigo, um coração batendo, um corpo forte e amor pelo outro.

A introspecção é companheira e cada um vai conforme o seu desejo se apresenta. Sozinhos, acompanhados, tagarelando, absolutamente calados. As setas pelo caminho nos lembram um jogo de videogame. Você só se perde se quiser e quando quiser seguir o caminho contrário, vai encontrar surpresas, mas também o caminho de volta. Uma metáfora da vida como ela é.

Ainda que seja um caminho solitário, você nunca estará sozinho. Acima de tudo, há você consigo mesmo. Eu estou achando o máximo me encontrar. Sim, eu poderia ter esse reencontro comigo em qualquer lugar, mas estou achando bom que seja aqui e agora, onde e como eu quis estar.

 

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