Editorial

Visão do Correio: A fome do país que alimenta o mundo

Dono do setor produtivo mais moderno do mundo, o país do agronegócio, quarto maior exportador mundial de produtos agropecuários, vê mais de 33 milhões de seus habitantes passarem fome

Correio Braziliense
postado em 13/06/2022 06:00
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

O potencial maior fornecedor de alimentos para o planeta tem fome. Dono do setor produtivo mais moderno do mundo, segundo avaliação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o país do agronegócio, quarto maior exportador mundial de produtos agropecuários, atrás apenas da União Europeia, Estados Unidos e China, vê mais de 33 milhões de seus habitantes passarem fome.

Os números revelados pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil (2º Vigisan), produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mostram um retrato assustador e contraditório de um país que se vangloria de sua produção de alimentos, enquanto 15,5% de seus habitantes enfrentam falta do que comer e mais da metade deles (125,2 milhões de pessoas) convivem com algum grau de insegurança alimentar.

É algo como se toda a população japonesa não soubesse exatamente como poderia se alimentar a cada novo dia. Ou como se todos os habitantes de Bélgica, Bolívia e Haiti, somados, convivessem diariamente com o fantasma da fome. Em padrões de nosso país continente, significa que, entre o último trimestre de 2020 e o primeiro de 2022, a forma mais grave de insegurança alimentar incorporou ao seu exército de famintos mais 14 milhões de brasileiros. Um número assustador, equivalente a dois terços dos moradores de Minas Gerais ou quase cinco vezes os que vivem no Distrito Federal.

As entrevistas para chegar a esses dados foram feitas de novembro de 2021 a abril deste ano em todas as regiões do país, abrangendo 12.745 moradias em 577 municípios distribuídos pelas 27 unidades da federação, produzindo um retrato considerado representativo do conjunto da população. Ele traduz em números o que se vê na prática nas grandes cidades, onde a multiplicação da população de miseráveis expõe a deterioração das condições sociais de um país em que a minoria dos lares, apenas 41,3%, se revelaram em conforto nutricional. E na zona rural a situação não melhora - pelo contrário: 18,6% dos lares enfrentam fome fora das áreas urbanas.

"A progressiva crise econômica, a pandemia e o desmonte das políticas públicas que poderiam minimizar o impacto das duas primeiras explicam o recrudescimento da insegurança alimentar e da fome entre o final de 2020 e o início de 2022", diz trecho do relatório.

A partir da divulgação dos números — e os aqui citados são apenas alguns dos mais impressionantes, em um mar de dados produzido pelo estudo -, as estatísticas estão disponíveis para serem analisadas, apropriadas e debatidas sob diferentes vieses. O que não parece deixar muita margem de dúvida, com base no relatório, é o agravamento das condições enfrentadas pela população mais carente, ao qual os programas sociais em vigor não dão conta de dar resposta.

O relatório mostra que mesmo o Auxílio Brasil, pago no período avaliado, não foi capaz de afastar a fome de 21,5% das famílias que conseguiram o benefício. Na mesma linha, reportagem publicada pelo jornal Estado de Minas, dos Diários Associados, mostrou que beneficiários do Auxílio Gás não têm conseguido sequer comprar o botijão: muitos cozinham a lenha - e eles agradecem quando há o que pôr nas panelas.

Mudar esse triste retrato de um país onde o agronegócio próspero e produtivo divide território com uma legião de famintos é tarefa de governos, sim, mas exige muito mais: exige um sentimento de inconformismo, mobilização e urgência em todos os setores da sociedade. Em seu primeiro encontro com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na 9ª Cúpula das Américas, o chefe do Executivo brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), chegou a afirmar: "O Brasil alimenta mais de 1 bilhão de pessoas pelo mundo com agricultura de ponta, mecanizada, e com tecnologia incomparável. O mundo hoje, ouso dizer, depende muito do Brasil para sua sobrevivência." Os brasileiros, demonstra o estudo sobre a fome, também.

 

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