Editorial

Visão do Correio: Adeus a Bruno e a Dom Phillips

Hoje, tanto o Vale do Javari quanto a Terra Ianomâmi e outros territórios de etnias originárias estão vulneráveis, sem nenhuma proteção

Familiares e líderes de diferentes povos indígenas do Nordeste, reunidos em Recife, ontem, participaram da cerimônia de sepultamento dos restos mortais do indigenista Bruno Araújo Pereira. Ele e o jornalista inglês Dom Phillips foram executados por invasores da Terra Indígena Vale do Javari, no dia 5 deste mês. Amanhã, em Niterói (RJ), será cremado o corpo de Phillips. A cerimônia está prevista para ter início às 9h, quando será divulgado um manifesto.

Os corpos de Bruno e Phillips só foram encontrados 10 dias depois. Os irmãos Amarildo Oliveira, o Pelado, e Oseney Oliveira, o Dos Santos, confessaram a barbárie. Além deles, foi preso Jefferson da Silva Lima, cúmplice da execução. Na última quinta-feira, Gabriel Pereira Dantas se entregou à Polícia Militar de São Paulo e admitiu ter pilotado o barco dos criminosos.

A Polícia Federal, que no primeiro momento descartou a possibilidade de haver um mandante, recuou e reconheceu que a eliminação de Bruno e Phillips pode ter sido encomendada. Os assassinos são suspeitos de trabalharem para grupos de pescadores ilegais, subordinados aos narcotraficantes, que trafegam entre o Brasil e países vizinhos — Peru, Colômbia e Bolívia. Bruno não só denunciou, mas buscou combater as ilegalidades no Vale do Javari, onde vivem vários povos originários isolados. Phillips acompanhava o amigo, para colher dados que se transformariam em livro.

O Vale do Javari, no Amazonas, foi reconhecido como território indígena, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Nos últimos anos, com o incentivo de políticas à exploração das terras dos povos originários, a situação tornou-se mais grave. Uma cena que lembra o que ocorreu nos anos 1990, época em que ainda existia uma política indigenista e uma Fundação Nacional do Índio (Funai) decidida cumprir a missão de proteger e defender os indígenas do país.

Por volta de 1992, o povo Ianomâmi foi acossado por garimpeiros, em Roraima. A área foi invadida por cerca de 40 mil homens dispostos a rasgar o território indígena em busca de ouro e outros minérios. Uma enorme matança de ianomâmis por garimpeiros, conhecida como o Massacre de Haximu, com repercussão internacional, sacudiu o poder público para tomar iniciativas contra os invasores, vetores de doenças e autores de atrocidades contra os indígenas.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Polícia Federal, com muito menos tecnologia do que há disponível hoje, conseguiram impor uma estratégia que levou à desocupação do território Ianomâmi. As operações contavam com apoio da Aeronáutica. Uma das primeiras providências foi a interdição do espaço aéreo, a fim de impedir que suprimentos e equipamentos chegassem aos garimpeiros. Ao mesmo tempo, incursões por terra chegavam aos acampamentos, onde equipamentos eram destruídos e invasores detidos. A ação ostensiva do poder público frustrou a tentativa dos garimpeiros de dominação da Terra Indígena Ianomâmi.

Hoje, tanto o Vale do Javari quanto a Terra Ianomâmi e outros territórios de etnias originárias estão vulneráveis, sem nenhuma proteção. Impõe-se ao governo federal rever suas decisões. Os ditames constitucionais não podem se tornar letra morta, como os corpos que sucumbem em defesa dos direitos dos guardiões da floresta.

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