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Análise: Chega de mortes decretadas por leis injustas ou pelo crime organizado

O ódio que se instalou contra povos indígenas é secular, assim como o ódio à população afro-brasileira. O nome disso é racismo. Esse ódio recai sobre todos que desejam democracia

Correio Braziliense
postado em 02/07/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Eliane Potiguara — Professora, escritora e poeta. Fundou a primeira ONG de mulheres indígenas no Brasil; cooperou com a Declaração Universal dos Direitos Indígenas da ONU 

A educação no Brasil nunca foi uma prática para a liberdade como queria Paulo Freire. A sociedade brasileira formada por miscigenação autoritária e assassina, nunca teve empatia pelos povos originários, aqueles que aqui estavam, desde a pretensa descoberta do país.

O ódio que se instalou contra povos indígenas é secular, assim como o ódio à população afro-brasileira. O nome disso é racismo. Esse ódio recai sobre todos que desejam democracia. E quem estiver no caminho do desenvolvimento insustentável, da ganância, certamente sofrerá as consequências trágicas como foi o caso de líderes indígenas desde sempre.

Marçal Tupã-Y, guarani kaiowá, assassinado em 1983 pelas mãos sujas de latifundiários, é um dos casos mais emblemáticos de crimes brutais desta era moderna, assim como os assassinatos dos tikunas em 1988, dos 16 indígenas Yanomami em 1993 e a morte brutal do pataxó Galdino em Brasília em 1997. Mesma sorte tiveram não-indígenas solidários e parceiros na luta.

O caso mais recente é o de Bruno Araújo Pereira, 51 anos, paraibano e amante da Amazônia e de Dom Phillips, 57, jornalista britânico. Viajavam juntos desde 2018 pelos rios da região. Denunciavam o avanço do desmatamento, a predação do garimpo, a invasão das terras indígenas. Eram amigos e defensores da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja, uma ONG que luta pelo estabelecimento de 26 povos isolados e contactados recentemente. Pesquisavam e recolhiam informações sobre ações dos garimpeiros ilegais, envenenadores de rios, narcotraficantes, milicianos, contrabandistas, grileiros, exploradores de madeira e o impacto disso sobre povos indígenas e o meio ambiente.

Essa máfia usa e abusa da arraia-miúda reacionária da população rural ou urbana, que não teve oportunidades de estudar, nem conheceu a prática educativa para liberdade. São os atuais bandeirantes, capitães do mato, estupradores das mulheres negras e indígenas, donos de engenho, lacaios de poderosos que vivem a cooptar pobres, roubar e assassinar indígenas. Os guaranis kaiowá acabam de sofrer violências dessa gente em Mato Grosso do Sul.

Há uma cronologia de avanços e recuos dos direitos indígenas no país desde as bulas papais até a Constituição de 1988. A Carta Magna apenas reconheceu aquilo que era nosso. Como assim o fizeram a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU). Mesmo com todos os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, prevalece o desrespeito.

O presidente Bolsonaro afirmou que em seu governo nenhuma terra indígena seria demarcada. O marco temporal, que busca favorecer o agronegócio e grandes empresas, é uma tese segundo a qual os povos indígenas só têm direito a reivindicar uma terra caso estivessem nela quando a Constituição foi promulgada. Isso é inconstitucional, viola os direitos territoriais indígenas e cria insegurança jurídica. Nossos ancestrais esperam justiça pelo massacre histórico e coletivo.

Temos uma população brasileira empobrecida, mão de obra escrava. Dessa forma, nasce a autoestima do povo brasileiro. Numa luta constante pela sobrevivência física, cultural, espiritual, territorial e ancestral e que ainda padece sob um sistema econômico e político opressor. Busca ascensão, mas esbarra no racismo estrutural.

Povos indígenas têm se organizado para fortalecer sua identidade como expressão da dignidade humana. Trabalham estratégias filosóficas de sobrevivência como "retorno à terra", "campo em chamas", "memória coletiva", "eu estive aqui o tempo todo e você não viu", "apagamento", "violência", "formas de relacionar a autoestima", "aliança com a terra", "o caboclo existe, é um de nós", "arte: um instrumento de luta", "lugar de fala" e "gerar documentos que provem os deslocamentos dos povos indígenas de suas terras e a relação com suas histórias".

A ancestralidade acessa várias formas de existir e de se apresentar ao mundo, nutrindo as artes por meio de rios, montanhas, avô sol, avó lua, alimentos, fauna, flora, tudo conectado e isso precisa estar nas escolas urbanas e rurais e na comunicação de massa.

Mentes criativas trabalham numa prática libertadora. Nossos pajés e líderes espirituais de vários segmentos religiosos, com grande fé no Criador e conectados com a maestria ancestral, têm novos desafios e trabalhos. Nós, povos indígenas e ativistas dos direitos humanos não podemos mais aceitar a morte decretada por leis injustas e pelas máfias de crimes organizados. Somos vida, somos luz, somos presente e futuro do Brasil.

 


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