opinião

Visto, lido e ouvido: Cidadãos de segunda classe

A noção de Estado e cidadania é, entre nós, uma experiência recente que ainda parece engatinhar, tal como a dominação e ascendência do governo sobre toda a população

Circe Cunha (interina)
postado em 02/07/2022 06:00
 (crédito: Guilherme Gandolfi/ reprodução)
(crédito: Guilherme Gandolfi/ reprodução)

Quando a questão é o relacionamento entre o cidadão e o Estado, é lícito dizer que pouca coisa mudou de fato desde o Brasil colônia. Ao longo dos séculos, quando foram estabelecidos os governos gerais pela metrópole portuguesa, as relações entre a população, tanto no seu coletivo, quanto individualmente, sempre foram desiguais, para dizer o mínimo.

Essa dissimetria decorre desde que, por essas bandas, foram estendidas as relações mercantilistas, que orientavam a economia mundial naquele período, colocando a metrópole no centro das decisões e tornando a colônia uma economia complementar, submetida as diretrizes dos monarcas lá em Lisboa.

A noção de Estado e cidadania é, entre nós, uma experiência recente que ainda parece engatinhar, tal como a dominação e ascendência do governo sobre toda a população. Temos, no nosso caso e em pleno século 21 um modelo político desigual em que o Estado se apresenta como uma entidade dotada de grandes poderes e que age com certa onipotência sobre a população, que é, em sua maioria, indefesa e sujeita aos humores dos governos e sempre tutelada por uma elite política que controla, com mão de ferro, a máquina do Estado no momento das cobranças.

Dessa forma, substituímos o antigo mercantilismo da era moderna, pelo estatismo, com o Estado empreendendo e atuando febrilmente onde deveria estar a iniciativa privada, produzindo riquezas, que ao fim e ao cabo são drenadas e apropriadas, em sua grande parte, pela elite no governo e em seu entorno imediato, formado pelos campeões ou mais propriamente por uma camada de oligarcas escolhidos a dedo, por critérios de compadrio ou outros relacionamentos pouco ou nada republicanos.

Qualquer cidadão da base da pirâmide social ou aquele que acredita ainda sê-lo pelos poderes da Constituição, que tiver a má sorte de ficar em dívida com o Estado, por qualquer motivo, e vier a cair em arapucas do tipo malha fina da Receita, ou for mandado para o purgatório eterno da dívida pública, por débitos com os fornecedores de água, de eletricidade, ou tiver questões pendentes na área de trânsito ou de licenciamento de veículos, para ficar no básico, poderá experienciar na carne o quão é desigual perante a lei e o quão é pequeno e indefeso perante o Estado leviatã.

Esse mesmo cidadão de segunda classe custa acreditar quando observa que, para aqueles que estão no alto da pirâmide e que devem bilhões de reais ao erário, por falcatruas diversas, inclusive corrupção e lavagem de dinheiro, o Estado age com mão leve, fazendo todo o esforço para amenizar as agruras momentâneas do rico devedor. Para esses, existem os mecanismos brandos da falência assistida e dos empréstimos amigos para solucionar a insolvência.

Para os devedores de segunda classe, a lei; para os devedores vips, todos os esforços do Estado para apaziguar a questão. Observe bem o que ocorreu com os irmãos Batistas, da Friboi. Compraram, literalmente, toda a República, com o dinheiro dos contribuintes, em forma de renúncia ou incentivos e outras benesses via BNDES. Eles confessaram os crimes, graças à Lava-Jato e foram para os Estados Unidos cuidar da vida. Um outro Batista, o Eike, milionário, amigo do governo, meteu-se pelos mesmos caminhos tortos.

O que ocorreu depois ainda é incerto. Tudo isso e mais outros milhares de casos dessa natureza, envolvendo os amigos do rei, poderiam ficar como estão, não fosse por um detalhe: no fim das contas, é você quem ficará com o prejuízo e pagará por esse e outros rombos espetaculares, feitos à luz do dia e com aval expresso da elite do Estado.

A você caberá a tarefa de cobrir essas falcatruas bilionárias, ao mesmo tempo em que deverá arranjar uma maneira de quitar sua dívida irrisória com os fornecedores de luz e de água ou do Detran. E é melhor andar logo por que a sua dívida, ao contrário do que ocorre com os poderosos, é entregue para bancos ou agências agiotas que cobrarão juros diários, transformando um atraso que era de R$ 50 em um novo passivo de mais de R$ 50 mil.

 


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