Eleições 2022

Artigo: Poder e saber

Correio Braziliense
postado em 05/07/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF - Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)

Ulysses Guimarães, o Senhor Constituinte, político de larga experiência, enorme vivência política, nunca foi objeto de nenhuma denúncia de qualquer tipo de comportamento inadequado e muito menos de se envolver em algum malfeito. Homem simples, cumpriu a missão honrosa de levar o Brasil com calma, objetividade, sem concessões, ao restabelecimento da democracia e das garantias básicas do cidadão. Político admirável.

Lembrei de Ulysses porque ele era o personagem das grandes frases. Tribuno brilhante, seu discurso no momento final da Constituinte é notável. Um dos ensinamentos que ele deixou a seus pósteros foi uma definição brilhante, que em sua simplicidade resume os problemas brasileiros atuais. ''É preciso temer, sempre, aquele que pode mais do que sabe". É o guarda da esquina, suposto defensor da lei, que anda armado. Por causa de uma bobagem ele pode mandar o cidadão de bem para a cadeia ou, no limite, dar um tiro e acabar com uma vida. Não é preciso muito esforço para colocar dentro dessa sentença o presidente Jair Bolsonaro. Ele pode mais do que sabe.

Seu governo é errático, não tem projeto, metas nem preocupações sociais. Percebeu que não tinha meios e modos de negociar com o Congresso e entregou o governo aos líderes do Centrão. Desistiu de governar. E se dedicou exclusivamente à sua reeleição. Quem governa, na prática, é o presidente da Câmara, Arthur Lyra. Ciro Nogueira, na Casa Civil, completa o time que administra o país, distribui verbas públicas de acordo com o interesse do grupo. Não há política de longo prazo. Na verdade, só existe o improviso.

O único objetivo é vencer Lula na disputa pela Presidência da República. Os políticos do Centrão são experientes. Eles sabem que a vida não acaba se Bolsonaro perder. Mudam de lado com a facilidade de quem troca de camisa. Foi assim no episódio do impeachment de Dilma Rousseff. Por essa razão, Bolsonaro escolheu o general Braga Neto para ser seu vice. Ele entende que assim se protege de eventual traição de seus atuais aliados no Congresso. Perde parte do eleitorado, mas se defende de um possível futuro golpe de Estado parlamentar.

Lula conhece o Brasil, as lideranças políticas nacionais e regionais. Ele não tem dificuldades para conversar com direita, esquerda e empresários. Acumulou experiência quando ganhou, quando perdeu e quando passou um tempo atrás das grades. É respeitado no exterior, foi recebido pelos principais parlamentos europeus, por chefes de Estado, antes e depois, na qualidade de presidente da República e agora na posição de candidato depois de passar pelos dias amargos da prisão. Guardadas as devidas proporções, Lula cumpre percurso assemelhado ao de Nelson Mandela na África do Sul.

No país africano, a questão racista dividia uma sociedade negra que foi dominada, pela força, por brancos europeus. No Brasil a questão é a inclusão dos milhões de pobres e excluídos dos benefícios da sociedade. É difícil viver no país que é um dos maiores produtores do mundo de grãos e carnes, mas convive com cerca de 30 milhões de pessoas que passam fome. É outro tipo de apartheid, é uma tragédia latino-americana, que ganha especial destaque no país rico em matérias-primas e notável desenvolvimento do agronegócio. O país alimenta bilhões de pessoas no mundo, mas esquece dos seus.

Mandela saiu da prisão, depois de 29 anos de cativeiro, e sua primeira preocupação foi dar garantias aos brancos de que o país iria se unir sem ódios nem rancores. Não haveria revanche, nem vingança. O líder fez o possível e o impossível para colocar brancos e negros lado a lado na pacificação do país. Deu a partida no longo trabalho de convivência pacífica entre os divergentes no sul da África. É um notável exemplo de político capaz de enxergar além do horizonte e traçar, com absoluta clareza, seus objetivos. Mandela morreu, mas seu exemplo permanece vivo. Legou a seus pósteros um país melhor.

Caso Lula vença a eleição, vai necessariamente conviver com os saudosos de Bolsonaro, que poderão produzir atos de violência ou terrorismo urbano. Presencial ou por via das redes sociais. É nesse teatro que os rancores precisam ser removidos da cena política em nome dos objetivos maiores para vencer os desafios da pobreza e promover o desenvolvimento. Dividido por ódios e rancores, o país não sai do lugar. Quem vencer a eleição terá que engolir provocações, desaforos, desafios até mesmo pessoais para poder desfraldar a bandeira da paz. Não deve ser o presidente que pode mais do que sabe. Ele precisará entender o tamanho de sua responsabilidade. E seu momento histórico.

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