ser brasileiro

Artigo: Ser mito de verdade

Rodrigo Craveiro
postado em 10/08/2022 06:00
 (crédito:   )
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Mito é o pai de família que sai de madrugada, depende de duas ou três conduções para chegar ao emprego, trabalha oito horas diárias, volta para casa depois de escurecer e repete isso todos os dias, em troca de um salário mínimo. Mito é o brasileiro que vai ao supermercado, faz inúmeras contas e se desdobra para levar ao lar o alimento dos filhos. E se derrete com um sorriso, mesmo que o coração esteja atordoado pelas dívidas acumuladas e pela desesperança. Mito é aquele que chora baixinho no banheiro, porque sente que a vida está difícil demais e não vê nenhuma perspectiva a curto e a médio prazos. E, mesmo assim, precisa sacudir a poeira e seguir em frente. Porque tudo o que a vida quer é coragem. E desistir não é, nem nunca será, opção.

Mito é quem abre a geladeira e se depara com tão pouco ou quase nada. As entranhas lhe doem e corroem sua própria dignidade. Mas tenta ser forte o bastante diante de quem o ama. Resolve preparar o que for possível de refeição, mesmo que tenha que inovar ante a escassez, e aceita a fome para si, enquanto sacia a de suas crianças. Mito é quem enfrenta uma jornada extenuante em busca por emprego. Visita tantas empresas e revisita tantos "nãos", enquanto o tempo e os boletos não esperam nunca. Mito é o pai que encontra forças, não se sabe de onde, para chorar sobre o caixão do próprio filho, arrancado da vida pela violência tosca e estúpida, abastecida pelo culto às armas e pelo discurso de ódio. E se vê forçado a uma despedida que contraria a ordem natural da vida. Precisa ser destemido o bastante para desmanchar o quarto de um pedaço de si que se foi para sempre.

Mito é o José, o João ou a Maria, jogados de um lado e do outro pela burocracia, enquanto a doença lhes impõe futuro de incertezas e se perdem nas filas gigantescas de transplantes ou na insensatez do Estado em lhes negar exames, mesmo que suas vidas dependam disso. Mito é quem, em plena pandemia, se descobre perdido em meio às fake news e constata que o governo vomita absurdos e mentiras sobre a vacina. Ainda assim, aposta no jornalismo como fonte de informação séria, responsável e fruto de apuração.

Mito é aquele que ainda se esforça para sentir orgulho de ser brasileiro, enquanto vê a democracia, tão cara e tão frágil, ser açoitada diariamente por palavras inoportunas e perigosas de quem se julga acima de tudo e de todos. E ainda faz questão de acreditar nela como tábua de salvação. Aquele que se vê forçado a um autoexílio das próprias ideias, que prefere se silenciar por medo da forte polarização, que tantas vezes rouba a razão. Mito é aquele que, exposto a uma dicotomia distorcida de uma pretensa batalha entre o bem e o mal, ainda prefere acreditar em seus ideais. E sonha com um país acolhedor, aconchegante, uma Pátria-Mãe que conforta o filho, em vez de impor-lhe o medo do amanhã.

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