EDITORIAL

Visão do Correio: A polêmica sobre o tamanho da fome

Correio Braziliense
postado em 26/08/2022 06:00

Quantos famintos vagam pelo país que se vangloria de ser um dos celeiros do mundo? A pergunta entrou no centro de uma cena política já conturbada depois que o atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Erik Alencar de Figueiredo — ex-subsecretário de Política Fiscal da equipe do ministro Paulo Guedes e no cargo desde março — assinou estudo no qual põe em dúvida resultados de recentes pesquisas que apontam o aumento no número de brasileiros em insegurança alimentar.

Em estudo de 18 páginas intitulado "Expansão do programa Auxílio Brasil: uma reflexão preliminar", o economista sustenta, abordando impactos do programa social do governo federal sobre indicadores socioeconômicos, que houve aumento da rede de proteção social no país. Segundo ele, foram incluídas mais de 5,7 milhões de famílias no projeto, com injeção de R$ 30,3 bilhões nos oito primeiros meses de 2022 em função do aumento do benefício. O texto procura relacionar ainda a iniciativa com o estímulo ao mercado de trabalho formal, sustentando que "foram gerados, em média, 365 novos empregos formais para cada 1 mil famílias incluídas no programa".

Mas argumenta que, apesar dos dados que apresenta, "pesquisas recentes têm destacado o crescimento da prevalência de desnutrição e insegurança alimentar no país", para sustentar que "de forma surpreendente, esse crescimento não tem impactado os indicadores de saúde ligados à prevalência da fome, o que contraria frontalmente a literatura especializada".

Entre os estudos cujos resultados põe em xeque, o trabalho de Erik Alencar de Figueiredo em sua "Nota da Presidência" do Ipea cita nominalmente o "2º Vigisan: inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil". É uma referência a sondagem feita pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), constituída por pesquisadores, professores e estudantes, com execução do Instituto Vox Populi e apoio de organizações como a Ação da Cidadania, a ActionAid, a Fundação Friedrich Ebert Brasil e o Sesc São Paulo.

Com entrevistas feitas de novembro de 2021 a abril deste ano em todas as regiões do país, abrangendo 12.745 moradias em 577 municípios distribuídos pelas 27 unidades da federação, a pesquisa se apresenta como um retrato representativo do conjunto do país. E sustenta que mais de 33 milhões de pessoas convivem com a fome, o equivalente a 15,5% da população, enquanto mais da metade dos brasileiros (125,2 milhões de pessoas) enfrentam algum grau de insegurança alimentar. Aponta ainda que, entre o último trimestre de 2020 e o primeiro de 2022, a forma mais grave de déficit de alimentação incorporou ao exército de famintos mais 14 milhões de cidadãos.

Enquanto o estudo do presidente do Ipea defende os avanços socieconômicos do programa que é a principal vitrine social da atual gestão, o 2º Vigisan sustenta em seu relatório que, ao lado da progressiva crise econômica e da pandemia, "o desmonte das políticas públicas que poderiam minimizar o impacto das duas primeiras explica o recrudescimento da insegurança alimentar e da fome entre o final de 2020 e o início de 2022".

Em ano eleitoral, é previsível que dados e estatísticas sobre os desafios sociais que se agravaram durante a pandemia — o que parece ser consenso, embora haja divergências sobre as causas — sejam apropriados de formas diversas, por diferentes correntes, conveniências e narrativas. Sem entrar no mérito de cada uma, parece claro que, menor ou maior, o exército de famintos é uma realidade que deveria envergonhar qualquer pessoa em uma nação que se orgulha de ser uma potência do agronegócio mundial.

Diante dela, mais produtivo do que discutir o tamanho da população com fome — embora o debate não deixe de ser relevante —, parece ser apresentar aos candidatos propostas que deem conta da urgência de se enfrentar essa chaga nacional. E que esse enfrentamento venha de programas economicamente sustentáveis, que não se resumam a benefícios sociais que aumentam ou diminuem ao sabor dos ventos da política — soprem eles da direita ou da esquerda.

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