Artigo: A esperança e a saudade

Correio Braziliense

postado em 23/09/2022 06:00

(crédito: Reprodução/Freepik)

Henrique Andrade - Presidente do Instituto Doando Vida por Rafa e Clara

Dizem que a saudade é o amor que fica, não importa a distância, não importa a circunstância. A saudade vive em mim... Desde a partida de Rafa e Clara, há nove anos, em um trágico acidente. Tomou meu ser e não mais arredou o pé, se agiganta tanto nas lembranças, quanto no presente ou nos planos futuros. Perder um rebento é algo insuperável para um pai e avô. Eu perdi em dobro porque minha filha e neta se foram juntas. Então, a saudade é múltipla de dois em meu peito. Sigo tentando lidar com a dor, com as ausências, com os vazios.

Mas, este artigo não é sobre dor, e sim, sobre esperança. De alguma forma, em meio ao turbilhão que a saudade embala, eu e minha esposa, nossa família e nossos amigos conseguimos reunir forças para ressignificar tudo ao nosso redor. Ou quase tudo. A crença de que o destino tem um propósito foi chegando em doses homeopáticas. Sendo muito sincero, acredito, de coração, que a doçura, o amor, a alegria, o altruísmo que as meninas emanavam, nos ajudou a realinhar a rota da vida para transformar vidas que precisam de novas rotas.

Depois que elas partiram, assimilamos que, na vida, não temos as rédeas de quase nada. Aprendemos que a dor do outro é também a nossa dor. Além disso tudo, passamos a sonhar o que a Rafa sonhava. Lembrávamos o quanto ela desejava atuar com crianças vulneráveis para dar a elas a chance de lutar por um destino digno. Minha filha acreditava que uma criança forte e bem nutrida encara as dificuldades da vida com a obstinação necessária para superar os obstáculos impostos a ela desde a primeira infância. E eles são muitos.

O sonho da Rafa, passou a ser o nosso sonho. É por ele que lutamos diariamente. Criamos o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara. Ele é um oásis para a meninada que mora na desestruturada região da Chácara Santa Luzia/Cidade Estrutural. No IDV, as crianças que têm fome são alimentadas, como a Rafaela imaginou um dia. Lá, a garotada de 2 a 5 anos passa o dia usufruindo de uma estrutura na qual toda criança tem direito. Os pequeninos têm acesso a uma alimentação saudável, participam de atividades sociopedagógicas, brincam em um local seguro, frequentam aulas de balé e judô, vivem a infância como deve ser.

No instituto, fazemos de tudo para semear um futuro melhor àqueles cujo destino parecia estar relegado a perpetuar o ciclo da miséria. Começamos esse trabalho em 2014, conhecendo de perto a comunidade de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Distrito Federal, que fica às margens do lixão desativado em 2018. Quando a nossa OSC abriu as portas, atendíamos pouco mais que 40 crianças. Hoje, amparamos 80.

Aprendemos a fazer metamorfoses. Nós transformamos o luto em luta, a dor em amor ao próximo, o sonho em realidade. As crianças chegam, muitas apáticas e sem forças. Nós semeamos nelas o afeto e a esperança, alimentamos o corpo e a alma. Elas desabrocham. Logo ficam fortes, espertas, sorridentes, felizes. Aos poucos, percebemos que nossas crianças vivem em famílias que, é claro, também precisam de auxílio. Buscamos ajuda, ecoamos nosso propósito e estamos ampliando nossa linha de atuação. O Instituto Doando Vida por Rafa e Clara existe e é uma realidade porque o ser humano doa. A doação é a força motriz do nosso trabalho. Sem as doações não avançamos, não funcionamos, não existimos. Recebemos doação de pessoas que entendem que é preciso descruzar os braços, doação de empresas que percebem que um mundo melhor se faz com solidariedade, doação de quem sonha com um país mais justo, menos desigual, com menos discurso e mais ação.

Neste ano, inauguramos uma Cozinha-Escola. Nela, ministramos cursos para instruir e profissionalizar os moradores da comunidade para que eles possam ter um lugar ao sol. É um trabalho lindo, que também leva esperança àqueles acostumados a aceitar os nãos, o desamparo, o descaso. Também oferecemos cursos de programação com desenvolvimento de games e aplicativos, aulas de violão, oficinas com as mais diversas temáticas. Sempre buscando trazer a cidadania e as possibilidades a quem precisa entender que é possível quebrar ciclos que parecem inquebráveis.

E assim vamos seguindo... O amor por Rafa e Clara se multiplicou e floresce em todas as crianças amparadas pelo nosso Instituto, pelo Instituto que doa vida por Rafa e Clara. Sentimos as nossas meninas presentes em cada sorriso, em cada conquista, em cada sopro de esperança. A saudade é perene e fica. E o amor também. Pra sempre!