EDITORIAL

Visão do Correio: Os dois brasis da alimentação

A preocupação com a nutrição dos brasileiros — que já se transformou em tema de campanha e motivou debate sobre o tamanho do exército de famintos no país que é potência do agronegócio — volta a ficar em evidência, desta vez por razão aparentemente oposta, mas não contraditória. Estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com cientistas da Universidade Federal de São Paulo, da Universidade Federal de Uberlândia, do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) e da Universidad Mayor do Chile aponta que até 2030 três em cada dez adultos podem se tornar obesos no Brasil. Os dados do trabalho mostram que, assim como a questão da fome, a do sobrepeso tem fundo socioeconômico e implicações tanto para a saúde pública quanto para o sistema de assistência social.

O estudo "Tendências temporais e epidemia de obesidade projetada em adultos brasileiros entre 2006 e 2030", divulgado na publicação científica Scientific Reports, usou como base dados da pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), do Ministério da Saúde, coletados por entrevista telefônica entre 2006 e 2019 com 730.309 participantes. A constatação é de que a prevalência de obesidade aumentou de 11,8% dos brasileiros com mais de 18 anos, em 2006, para 20,3%, em 2019.

Usando os dados como projeção para o futuro, a estimativa é de que, no início da próxima década, 38,5% dos brasileiros adultos sofram com sobrepeso, 20,3% sejam obesos e 9,3% enfrentem as formas mais graves do excesso de massa corporal, totalizando 68,1% da população acima do peso desejável. E, embora os dados indiquem aumento sustentado da epidemia de obesidade em todos os subgrupos sociais e demográficos do país, a tendência até 2030 é mais preocupante entre mulheres, negros e outras etnias minoritárias, adultos de meia idade, pessoas com até sete anos de escolaridade e nas capitais do Norte e do Centro-Oeste.

A constatação chama a atenção pelo aparente contraste com outro estudo de impacto nacional, este sobre a fome. Enquanto a obesidade parece ser um desafio para parcela cada vez maior da população adulta, o "2º Vigisan: inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil" aponta que aumentou em 14 milhões o total de brasileiros que convivem com a falta de alimentos, apenas entre o último trimestre de 2020 e o primeiro de 2022.

O estudo é de responsabilidade da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), constituída por pesquisadores, professores e estudantes. Baseado em entrevistas feitas de novembro de 2021 a abril deste ano, abrangendo em 12.745 moradias de 577 municípios distribuídos pelas 27 unidades da federação, o trabalho sustenta que mais de 33 milhões de pessoas convivem com a fome no país, o equivalente a 15,5% da população, enquanto 125,2 milhões de pessoas enfrentam algum grau de insegurança alimentar.

Aparentemente opostos, os dois estudos parecem se tocar no que diz respeito às origens e aos desafios. Se a nutrição insuficiente é atribuída à progressiva crise econômica agravada pela pandemia, o estudo sobre o excesso de peso entre brasileiros também constata que a obesidade afeta grupos mais desfavorecidos socioeconomicamente, que tendem a ter menos acesso à alimentação de qualidade, a práticas físicas saudáveis e ao atendimento de saúde. A legião de brasileiros com acesso restrito aos alimentos e a dos que têm disponibilidade de nutrição, mas comem mal, se encontram na pressão por políticas públicas de saúde e de assistência social que equilibrem as necessidades nutricionais desses dois extremos da população.

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