IDENTIDADE NACIONAL

Nacionalismo ou globalização?

Escolher outro país para viver deixou de ser visto como atitude desesperada ou antipatriótica. Passou a ser chique ser considerado "cidadão do mundo"

Jaime Pinsky
postado em 06/11/2022 00:01 / atualizado em 08/11/2022 16:21
 (crédito: Philip Myrtorp/Unsplash)
(crédito: Philip Myrtorp/Unsplash)

A questão nacional, tema candente tempos atrás, voltou à tona com o conflito entre Rússia e Ucrânia, mas tem sido abordado (geralmente mal abordado, é verdade) na mídia tradicional e social, em outras ocasiões, como no desligamento da Grã Bretanha da Comunidade Europeia, durante a fragmentação da Iugoslávia (sérvios, croatas, bósnios, etc.), no enfrentamento entre China e Formosa, no debate sobre os curdos. Sem entender o problema das nações e da identidade nacional, estamos perdidos, sujeitos a informações fragmentadas, desconexas. Nada como recorrer a um bom livro sobre o tema para não confundir protagonistas e fazer uma salada que confunde nações dos Balcãs com os do Báltico, árabes e muçulmanos, israelenses e judeus. Por ora, gostaria de fazer algumas reflexões sobre o tema.

No final do século 20, acreditava-se que a instituição da nação estava com os dias contados. A economia, internacionalizada havia muito tempo, ficou mais supranacional com a entrada da China. Nos anos 1990, a Rússia havia aberto mão do sonho socialista e parecia ter se tornado mais um país capitalista e democrático. As fábricas, inclusive as montadoras de automóveis, passaram a ter fornecedores em dezenas de países. A globalização avançava em todas as frentes e parecia irreversível. O mundo ficava menor.

Viagens internacionais, antes um privilégio de poucos, se popularizavam. O inglês, que já era ensinado nos colégios, adquiriu o status de língua franca por toda parte. Nas universidades importantes os pesquisadores passaram a publicar nessa língua, estabelecendo diálogo frutífero com colegas do mundo inteiro. A Europa optou por unificar-se, não sob o tacão de qualquer ideologia, como o nazismo, mas por interesse econômico e cultural, abrindo mão de certo chauvinismo tradicional.

Escolher outro país para viver deixou de ser visto como atitude desesperada ou antipatriótica. Passou a ser chique ser considerado "cidadão do mundo". A identidade nacional e a própria instituição da nação pareciam, então, correr risco de desaparecer. Mas isso não aconteceu.

Se, de um lado, a globalização avançava, do outro começou a se desenvolver uma antiglobalização. Motivos, entre outros: a desindustrialização e seu efeito imediato, o desemprego; a real ou suposta defesa dos valores culturais específicos de uma nacionalidade, sejam eles uma língua, um modo de fabricar queijo, ou de dançar o tango; a reafirmação religiosa, apresentada como fator cultural antiglobalizante, e tantos outros.

Nos limites deste escrito vale a pena lembrar que várias sociedades praticam, de forma sorrateira, a segregação das mulheres, sob o pretexto de ser elemento constituinte de identidade nacional e religiosa. Apoiadas por alegados motivos multiculturalistas, governos e religiões decidem o que é melhor para elas vestirem, se podem ou não sair de casa desacompanhadas, se devem ou não dirigir veículos, e até se merecem ser mortas se não usarem o lenço de cabeça de modo adequado (sendo que o "adequado" não é decidido por elas.

Entre desculpas esfarrapadas, mentiras descaradas, alianças políticas e econômicas vantajosas ("eu te dou o meu petróleo e você não implica com nossa estrutura política arcaica e preconceituosa") avançou a antiglobalização, o velho sentimento nacional ou o chauvinismo. Confusos com todo esse movimento, jornalistas, homens de negócio, diplomatas e até intelectuais têm dificuldade em entender o que aconteceu e está acontecendo nesse reflorescimento das nações, no ressurgimento do sentimento nacional, num discurso de liberdade que, muitas vezes é chauvinista e preconceituoso, na luta territorial que, frequentemente vai beneficiar apenas uma pequena camada de cidadãos, mas é apresentada como guerra de libertação nacional.

E não é só a direita, tradicional fã do nacionalismo, que embarca nesse barco furado. Por falta de cultura histórica, ou simplesmente por pura má-fé, partidos de esquerda, pseudodefensores do anticolonialismo se tornaram propagadores das "maravilhas" de qualquer minoria que afirme que sua identidade cultural é antiocidental.

Um exemplo recente: Há poucos dias uma milícia de fanáticos religiosos, reconhecidos e empoderados pelo governo iraniano, deteve uma garota em Teerã pelo fato de uma mecha de cabelo dela ter escapado do lenço que o prendia. A menina, de 17 anos, foi torturada até morrer. Em nome de uma teocracia arcaica. Foi, evidentemente, uma atitude contra todas as mulheres iranianas. Contra todas as mulheres do mundo.

As iranianas, arriscando a vida, saíram à rua, protestando. Pediam liberdade. O que aconteceu? Foram espancadas. Foram presas. A polícia atirou nelas com balas de verdade. Centenas delas morreram. Escândalo mundial. Menos por aqui, de onde não saíram manifestos relevantes de solidariedade às mulheres iranianas e nenhuma condenação ao regime dos aiatolás. Por que será?

Jaime Pinsky é professor, editor, escritor

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