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Artigo: Transição precisa discutir a Lei Rouanet

Jorge Antunes
postado em 06/12/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

JORGE ANTUNES - Compositor, maestro, professor titular aposentado da UnB, membro da Academia Brasileira de Música

O grupo técnico de cultura que integra a equipe de transição de governo já trabalha a pleno vapor. Todos os participantes da cadeia produtiva da cultura brasileira estão curiosos em saber o que é discutido nas reuniões do grupo. Discute-se apenas a ideia de recriação de um Ministério para a área? Discute-se orçamento? Os membros do grupo estão atentos às mazelas, às injustiças e aos danos provocados pela Lei Rouanet?

As leis do mecenato, em seus moldes atuais, nada mais fazem do que privatizar o apoio à cultura. Este, que constitucionalmente é dever do Estado, é passado às mãos do empresário usurpador. Teorizações e desenvolvimentos desse raciocínio certamente nos levariam a concluir que a Lei Rouanet e seus filhotes são inconstitucionais.

O governo resolve praticar a renúncia fiscal. Que vem a ser isso? Praticamente, o governo demonstra não confiar em si mesmo porque, ao renunciar a uma percentagem ou à totalidade do imposto, o governo está, no fundo, dizendo ao empresário: "Não vou arrecadar seu tributo. Fique com a grana, porque se você me repassar o dinheiro eu o gastarei com bobagens, não o aplicando em cultura. Vários níveis de meus escalões poderão até mesmo embolsá-lo. Portanto, aplique você mesmo em cultura, diretamente, porque eu não confio em mim".

De acordo com essas leis de "incentivo à cultura", o empresário pode abater seus impostos aplicando recursos em projetos culturais. É ruim a instituição do incentivo fiscal nesses moldes, simplesmente porque não são isentos e desinteressados os critérios dos empresários na escolha do projeto a ser apoiado. Às portas do empresário batem diferentes artistas e produtores culturais. Na mesa de sua assessoria de marketing, para análise e julgamento, se avolumam: a turnê de uma orquestra alemã que toca Mozart; o show de um artista global que vende milhões de discos; a recuperação de um monumento histórico; o primeiro livro de poemas de um jovem escritor; o concerto de música computacional de vanguarda; o filme com atores desconhecidos e o filme com atores famosos. O empresário não vai dividir equaninemente sua verba entre os sete projetos. Ele escolherá aquele que mais interessa ao público-alvo de seu produto porque seu objetivo não é o apoio à cultura, mas o uso de parte de seus impostos no apoio à ação cultural que possa ajudar na venda de sua marca.

Cada empresa é livre de financiar o que quiser com sua verba de publicidade. Mas a ela não deveria ser permitido fazer o que quiser com o valor devido ao Tesouro Nacional ou ao Tesouro estadual. A cortesia não pode ser feita com o chapéu dos outros.

Para que o apoio à cultura possa ser efetivado de modo democrático, faz-se necessária a elaboração de uma nova lei em que o apoiador não tenha o direito de determinar a atividade cultural para a qual os recursos serão destinados. Assim, se o contribuinte — pessoa física ou jurídica — quisesse abater o valor de seus impostos apoiando ações culturais, o incentivo fiscal deveria ser depositado em um fundo a ser administrado por um conselho comunitário. Caberia a esse conselho distribuir os recursos do fundo, contemplando ações culturais de modo a compensar e corrigir as distorções impostas pelo mercado da indústria da cultura. Não poderia ser beneficiária do fundo a ação cultural autofinanciável, que tem público pagante garantido.

Nas avaliações de um projeto cultural, habitualmente é dada importância ao número presumido de público. O critério deveria ser invertido: quanto menor o público, mais apoio merece o projeto. A invenção, a audácia e a transgressão estéticas deixarão de existir se o produto cultural novo for colocado à mercê das leis do mercado.

Um conselho nacional de cultura, integrado de nomes representativos da vida cultural brasileira, administraria o fundo proposto. A mesma fórmula deveria ser adotada pelos poderes legislativos e executivos dos estados e municípios, com a criação de fundos de apoio à arte e à cultura.

Não quero tratar das questões relativas à formação do conselho nacional de cultura e dos conselhos de cultura estaduais e municipais. Sejam quais forem os seus membros — eleitos pela comunidade cultural ou escolhidos a dedo pelo presidente da República, governador ou prefeito, conforme o caso — ele dará conta do recado. A experiência tem demonstrado que a qualidade dos conselhos não depende dos métodos de escolha dos conselheiros. Qualquer conselho de cultura que prime pela idoneidade e pela isenção há de ser mais justo que qualquer empresário usurpador.

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