Peru

Artigo: O que dá sustança à alma

Rodrigo Craveiro
postado em 21/12/2022 06:00
 (crédito: Reprodução/Peru Rail)
(crédito: Reprodução/Peru Rail)

Algumas sensações são inesquecíveis. Brotam do fundo da alma como um rio caudaloso que chega à sua foz e deságua em lágrimas. Uma delas surgiu quando o horizonte que alcançava meus olhos era um mar de névoa branca. Aconteceu há 27 anos, mas me recordo de tudo como se fosse ontem. Ao fim de dois dias de caminhada na Trilha Inca, no Peru, eu e mochileiros de vários países alcançamos o Inti Punku ("Porta do Sol", em quíchua) — uma ruína incrustada caprichosamente no alto de uma montanha, de onde se tem uma vista espetacular.

Eram 7h da manhã e, à medida que Inti apresentava sua força, o tempo se abria e lá adiante surgiam as ruínas da magnífica cidadela de pedras. Olho para o lado e todos, sem exceção, estão em prantos. Machu Picchu é mais do que uma joia arqueológica ou uma maravilha da humanidade. Traz em si a perfeita harmonia com a natureza, o verde da mata, a suntuosidade das montanhas ao redor, o céu tão próximo, as lhamas que compõem o cenário e o condor. Sonho em retornar àquele lugar.

Aconteceu de novo em fevereiro de 2011. Dessa vez em Jerusalém, durante uma viagem de trabalho para cobrir uma conferência de energias renováveis. Tive a oportunidade de fazer uma visita ao Santo Sepulcro. Na porta de madeira que dá acesso ao pátio da basílica, duas idosas russas oram fervorosamente e aguardam. Minutos depois, um sacerdote abre a tranca. Assim que entro na igreja me deparo com a Pedra da Unção, onde se acredita que o corpo de Cristo foi ungido para o enterro. Acompanhado de dois jornalistas, um indiano e um sul-coreano, surpreendo-me tomado por uma emoção inexplicável. Choro. Eles nada entendem. Depois, a subida ao Gólgota, à direita; o toque no local onde se ergueu a cruz, hoje entre dois anjos de prata; a entrada na sepultura. Retornei ao local nas duas noites seguintes. O que senti naqueles dias foi surreal, inexplicável e místico.

Experiência similar tomara conta de mim um ano antes, durante o nascimento do meu filho. Nunca senti tanta paz e tanto amor como naquela noite de outubro de 2010, na sala de parto. Quando ele deu o primeiro choro, percebi que eu chorava junto. Ali nascia um pai. Ainda me emociono ao me recordar das minhas primeiras palavras para ele, de quando o peguei no colo pela primeira vez, das primeiras palavras ao vento, dos passos inseguros e determinados, do primeiro dia de escola.

Como escreveu o poeta argentino Jorge Luis Borges (1988-1986), a vida é feita de momentos que precisam ser agarrados. E aqueles instantes numinosos são especiais, marcam a alma da gente, moldam o nosso espírito e nos conectam ao sagrado. De repente, a gente se sente pequeno e percebe a grandiosidade de algo muito maior. Sensações assim fazem com que nos sintamos vivos. Dão sustança à nossa alma.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.