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Artigo: É preciso lutar como uma mulher ianomâmi

MARIA ELIZABETH ROCHA - Ministra do Superior Tribunal Militar

No Dia Internacional da Mulher descortinam-se com maior ênfase as agressões vivenciadas pelo gênero feminino no interior das organizações sociais patriarcais, como a brasileira. A data é dolorosamente utilizada para lançar luzes sobre as barbáries às quais ela é cotidianamente submetida e que tanto comprometem o ideário civilizatório.

Recentemente, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou a quarta edição do Relatório sobre a vitimização de mulheres no Brasil, no qual projeta as estatísticas da agonia sob todos os vieses da iniquidade: o assédio sexual, a violência doméstica, os feminicídios, os homicídios dolosos, entre outros flagelos, apresentando "um cenário avassalador de agravamento da violência" no ano de 2022, conforme narrado na própria apresentação.

Outro relatório, o Estatístico do Poder Judiciário sobre feminicídio, referente ao ano de 2019, aponta que 14% desses delitos envolveram mulheres indígenas, um sofrimento pouco conhecido, mas que igualmente atinge os povos originários, reféns das mutações culturais que promoveram alterações nos seus modos de ser e de viver e desencadearam brutalidades nas relações conjugais e familiares como trágica consequência. Dados levantados junto ao Poder Judiciário Amazonense dão conta de que no município de São Gabriel da Cachoeira, que abriga cinco etnias, foram julgados no ano de 2021 13 processos de violência doméstica, quantitativo absurdamente elevado para 92 casos em 2022.

Para agravar, a ferocidade dos garimpeiros e agentes externos que estupram, assassinam e engravidam meninas e mulheres, que oferecem alimentos em troca de favores sexuais, desbordam numa crise humanitária sem precedentes. Em paralelo, o genocídio da população ianomâmi presenciado em todo o seu horror pelo país, reproduz os efeitos da colonialidade que impôs aos indígenas um processo de aculturamento, de escravidão, de supressão de identidade e de terras tradicionais. E essas heranças coloniais nefastas e persistentes descaracterizaram os modelos equitativos de gênero, infligindo às mulheres a perda de prestígio e poder de relevância, subalternizando-as, ocultando-as e revitimizando-as. Uma intrusão que impactou a memória ancestral e comprometeu a existência autóctone.

Diante desse cenário, é fundamental a adoção de medidas proativas por parte do Estado como as adotadas pelo governo federal, certo de que, se o contrato social não abarcar indistintamente todos os cidadãos, a anomia romperá o senso de segurança daqueles que mais necessitam do poder público.

Boaventura Souza Santos sintetiza de maneira oportuna a exigência do cumprimento dos direitos humanos em sua pluralidade e diversidade: "Temos direito a reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza e temos direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza". O foco é a dignidade concebida como princípio, valor e norma, cerne das garantias fundamentais e meio pelo qual são asseguradas as múltiplas dimensões da existência. A toda pessoa deve ser possibilitado o direito a uma vida bem vivida. Ao Estado e às suas leis compete sustentá-la de modo a afiançar-lhe a inserção a um lugar de pertencimento.

Por certo a tríade liberal fundada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade rendeu ensejo às novas inspirações como liberdade, diversidade e tolerância, ideais que informam as virtudes cívicas neste início de século. Indiscutivelmente, toda a forma de hegemonia vem sendo desconstruída para dar espaço às identidades coletivas e individuais, numa fusão de horizontes que une, fragmentando.

A contemporaneidade argumenta, tanto com o direito das minorias quanto com o direito à liberdade de desenvolvimento da personalidade, num diálogo permanente. Está-se diante de um imperativo axiológico que não se rende ao banalismo do politicamente correto, ao contrário, normatiza conquistas que manejam diretamente com os princípios supremos da democracia.

Os vulneráveis carregam no corpo as marcas da violência real e simbólica da exclusão identitária. Por essa razão, a Carta Política de 1988 resguarda a tutela pelo reconhecimento como um pressuposto de autenticidade. A responsabilização solidária pelo "outro como um dos nossos" mitiga o sofrimento e a miséria ética, e espelha uma comunidade de princípios que valoriza a pluralidade dos sujeitos, ressignificando o patriotismo constitucional. É o que o processo de internacionalização dos direitos humanos e os tratados internacionais subscritos pelo Brasil noticiam ao acenarem para a esperança de um novo recomeço histórico que resgate a ancestralidade e a etnicidade com vistas a superar perversidades da dominação.

Não se pode dar espaço às novas formas de assujeitamentos nem, tampouco, permitir a impunidade das violências e das tentativas de extermínio sofridas pelos oprimidos. No tocante à mulher indígena, sua lealdade ao povo a que pertence, ao lado de um saber transmitido de geração a geração é o "símbolo da coragem para enfrentar os algozes e fazer o que tem de ser feito". Por isso é preciso lutar como uma mulher ianomâmi. Lutar em favor da vida e por um mundo mais solidário, fraterno e filógino. A sociedade não pode silenciar-se diante do ferido que grita de dor.

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