NULL
Opinião

Artigo: Visão de um estadista

O presidente Juscelino Kubitschek olhou para o horizonte e enxergou o futuro. Percebeu o que poucos conseguiram compreender. Era necessário integrar o interior brasileiro, que era desprezado e desconhecido

JK -  (crédito:  Maurenilson Freire)
JK - (crédito: Maurenilson Freire)
postado em 24/04/2023 06:00

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF — Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)

Brasília completou 63 anos. Para os pioneiros, o tempo passou rápido e a inauguração da capital em 21 de abril de 1960 ocorreu ontem. Outros, chegados mais tarde à cidade, contam o tempo a partir da decisão de enfrentar o calor, a seca, o clima diferente no Planalto Central, região de cerrado, vegetação baixa e estações do ano muito marcadas. O Plano Piloto, obra magistral do gênio de Lucio Costa, está situado a mil metros de altitude em relação ao nível do mar.

Tudo isso era novidade nos anos 1950 quando o presidente Juscelino Kubitschek fez seu plano de metas, os cinquenta anos em cinco, e introduziu a transferência da capital como a meta síntese. A reação dos cariocas foi furiosa. Os jornais do Rio de Janeiro foram quase unânimes em fazer todas as críticas possíveis contra a construção de Brasília. Houve gente que provou, com base em estudos supostamente sérios, que o Lago Paranoá jamais poderia encher.

Houve jornal que enviou fotógrafo às obras de Brasília para eternizar imagens da capital. O profissional colocou a máquina fotográfica no chão e os prédios apareceram nas imagens envoltos pelo mato. Seria a prova definitiva de que a construção de Brasília era uma deslavada mentira. Ataques ao presidente Juscelino eram diários. Mas o Rio de Janeiro dos anos cinquenta já não conseguia ser bom anfitrião do governo federal.

Qualquer greve de estudantes parava a cidade. Os garotos, espertos e abusados, se deitavam nos trilhos do bonde e com isso paralisavam o trânsito em quase toda cidade. O governo, no Palácio do Catete, estava ao alcance de grevistas, lobistas, militares golpistas, políticos de todos os matizes. As comunicações eram precárias. Falar por telefone do Rio para Petrópolis — pouco mais de 60 quilômetros de distância — exigia um tempo enorme de espera.

O transporte na cidade era pavoroso. Vale lembrar que os brasileiros importavam tudo: geladeiras, máquinas de lavar, roupa, comida e bebidas. Os poucos que viajavam aos Estados Unidos tinham que ceder aos amigos e parentes pedidos para trazer até calças jeans. O Brasil era um gigantesco quintal esparsamente habitado por 40-45 milhões de habitantes. Produzia café. Só.

O presidente olhou para o horizonte e enxergou o futuro. Percebeu o que poucos conseguiram compreender. Era necessário integrar o interior brasileiro, que era desprezado e desconhecido. Trabalhou com dois gênios, Oscar Niemeyer e Lucio Costa, dois tocadores de obras, Israel Pinheiro e Bernardo Sayão (este morreu na abertura da Belém-Brasília) e um conjunto de jovens entusiasmados com a ideia do progresso assaltando um Brasil velho, atrasado e carcomido por tradições religiosas. Os anos JK foram excepcionais. Além do progresso, da criação de indústria automobilística, da abertura de estradas, do programa de criação de hidrelétricas, a seleção brasileira de futebol conseguiu vencer a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, quando despontaram dois outros gênios, Garrincha e Pelé.

Brasília é uma obra política perfeita. O país se modernizou. JK foi cassado, perseguido, exilado. Mas os principais objetivos de seu programa de metas foram atingidos pela ação de outros governos. Não havia como voltar atrás. O Distrito Federal é hoje o terceiro maior conglomerado urbano do país. Atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. A Universidade de Brasília figura entre as principais do país. Obra de Darcy Ribeiro, também perseguido e exilado. É modelo para várias instituições no país.

Havia poucas rodovias. Automóveis e ônibus eram importados. Nos anos 1950 o carioca para ir a Porto Alegre de carro teria que viajar pela areia das praias do sul. Não havia caminhos. Para o Nordeste e o Norte só pelos navios da Costeira ou do Lloyd Brasileiro. Por terra, nem pensar. Hoje o país é cortado por estradas que levam até o extremo norte. Quem desejar ir a Caracas, Venezuela, de carro pode ir sem problemas, via Roraima. Quem quiser ir ao deserto de Atacama, passando por Cusco e por Rio Branco, no Acre, também pode viajar sem sobressaltos. Ou à Bahia, Ceará ou, ainda, Porto Alegre. Tudo asfaltado.

A descoberta do interior abriu o caminho para os agricultores brasileiros. Gaúchos e paranaenses se soltaram pelo norte e oeste, levaram a produção de grãos a nível jamais imaginado nos anos sessenta. Hoje a soja está entrando no Piauí, ocupa o oeste da Bahia e caminha pela Brasília-Santarém. Toda essa área é de conquista recente.

É o interior do país que o presidente pretendeu e conseguiu integrar à economia nacional. Pensar em sentido contrário favorece o estadista brasileiro: se Brasília não tivesse sido construída, o interior continuaria vazio, mas Rio e São Paulo poderiam ter se constituído uma única cidade. Megalópole ingovernável, temperada por todos os problemas da vida moderna.

 


Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

-->