sociedade

Artigo: Fascismo da cor versus racismo estrutural

"O uso do conceito fascismo para o título da obra e eixo de análise pareceu-me bastante impressionista e as justificativas pouco convincentes"

Muniz Sodré é um dos intelectuais mais fecundos do pensamento social brasileiro atual. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vem se destacando, quer no debate público nacional, quer na publicação de livros instigantes, como O terreiro e a cidade (1988) e Claros e escuros (1999). Agora brinda-nos com O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Como o próprio subtítulo indica, o intuito é traçar uma radiografia da questão racial no Brasil. Para tanto, ele empreende ampla investigação, que remonta ao período da escravidão e se estende até o presente.

Chama a atenção a erudição de Sodré, que aciona um arsenal de obras e autores, clássicos e contemporâneos, de diversos campos disciplinares (como história, literatura, economia, filosofia, sociologia, antropologia e comunicação social) para embasar o ensaio. Seu argumento central é de que passamos do racismo explícito da estrutura escravista, porém não refratário à ascensão social dos libertos e "pessoas livres de cor", para uma sociedade do pós-abolição que nega o racismo, mas que obstaculiza, quando não inviabiliza, o progresso social das pessoas negras, não reconhecendo ou apagando o patrimônio histórico-cultural e identitário desse segmento, no campo da memória, dos direitos e da cidadania.

A esse modelo de racismo sucessor da estrutura escravista, Sodré batiza de "forma social escravista". Com base nesse conceito, ele explica a transição da questão racial na história nacional, da escravidão à sociedade pós-abolição.

Para Sodré, as estruturas do Brasil republicano foram erigidas para não funcionar, caracterizando-se por uma espécie de cegueira de cor. Se o racismo aqui funciona é porque ele não é estrutural. Diferentemente dos Estados Unidos ou da África do Sul, onde havia ordenamentos político-jurídicos explicitamente segregacionistas, o racismo à brasileira seria produto (herança) das relações sociais escravistas, e não das estruturas. Um racismo institucional e intersubjetivo, mas não estrutural. É esse o pomo da discórdia entre Sodré e o conceito de racismo estrutural, particularmente, que foi difundido por Silvio Almeida.

O conceito de estrutura definido por Sodré é aquele expresso formalmente. Por isso, só seria válido o seu uso para designar sistemas raciais de segregação institucionalizada, como o do Jim Crown, nos Estados Unidos, e do apartheid na África do Sul. No entanto, Almeida, na obra Racismo estrutural (2018), opera com outra concepção de estrutura: a da tradição marxista, que compreende estrutura não como uma formalidade institucionalizada, mas antes como categoria analítica aplicada a uma formação social resultado de processos históricos que definem, no limite, as instituições, as classes sociais e a ação dos sujeitos, ou seja, estrutura é a base sobre a qual se constituem e organizam a vida política, econômica, cultural e intersubjetiva numa dada sociedade.

Para Almeida, o racismo é parte da ordem social. Apesar de ele, no Brasil, não ter se forjado de maneira explícita e oficial, fez (e faz) parte da própria estrutura social, que molda as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. A seu ver, processos institucionais e comportamentos intersubjetivos são derivados de uma sociedade cujo racismo é sistêmico. Não é algo criado pelas instituições, porém é por elas reproduzido. Aliás, o racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos. É por isso que Almeida postula, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, a necessidade de mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas.

Cabe notar que a tese de Sodré — de que o racismo à brasileira seria herança da escravidão — não é original. E o pior: já sofreu várias críticas desde a pesquisa pioneira de Carlos Hasenbalg — Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979). O racismo aqui não permaneceu intacto depois do regime de cativeiro, tendo sido reelaborado e assumido novos matizes, sentidos e significados, conforme novos contextos e interseções de marcadores, como região, geração, classe social e gênero.

O uso do conceito fascismo para o título da obra e eixo de análise pareceu-me bastante impressionista e as justificativas pouco convincentes. O autor tece algumas ilações generalizantes, sem lastro nas fontes coligidas. Talvez a obra se distinga menos pelo rigor da pesquisa científica e mais pela verve ensaística. Seja como for, com O fascismo da cor, Sodré consolida-se como um dos intérpretes do Brasil, enfrentando o espinhoso desafio de desvelar a natureza do racismo nacional.

*PETRÔNIO DOMINGUES - Doutor em história pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal de Sergipe

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