VICTOR HUGO LUÍS RACASÉNS FERREIRA PAIVA ARAÚJO, sociólogo
Embora a construção planejada de Brasília tenha sido efetuada por maioria de trabalhadores negros vindos de todo o Brasil (conhecidos como Candangos), essa população passou a viver em locais com piores condições de vida na capital. Segundo os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tendo como base o censo de 2010, Brasília é a cidade mais desigual e segregada do país e do mundo. Além disto, de acordo com a Delegacia Especializada em Crimes de Racismo e Discriminação (Decrin), em 2022, o Distrito Federal (DF) tem três vezes mais registros de crimes de racismo em relação à média nacional.
A Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), publicada em 2022, corrobora com os resultados encontrados: o Distrito Federal é um território negro no Brasil, com 57,4% de população assim autodeclarada. Em comparação, 40,9% se autodeclararam de cor branca, 1,4% amarela e 0,3% indígena. Porém, apesar da maioria da população do DF ser negra, o grupo racial reside majoritariamente em regiões onde há menos infraestrutura, recursos, investimentos, além de ser aquelas que mais sofrem com a repressão e a violência estatal.
Tais informações confirmam o racismo estrutural que permeia toda a sociedade brasileira, através da sua história escravista, política, econômica e moral enraizadas. Esse contexto macrossocial se inter-relaciona com as condições da dinâmica microssocial no DF, ou seja, nas relações sociais imediatas, como família, escola, mercado de trabalho, colegas e ciclos de amizades. Portanto, o racismo na capital pode provocar a naturalização, a manutenção e a reprodução, seja apresentado por instituições públicas e privadas, por relações microssociais, de forma despercebida ou velada e, por vezes, banalizada.
Em 2022 e 2023, observei um fato social utilizando a metodologia da sociologia clínica: negros que vivenciam a sociedade brasileira e do DF, intersubjetivamente apontam problemas socioeconômicos e cicatrizes emocionais por racismo. No período, trabalhei em bancas de seleção de concursos pela empresa Cebraspe, na qual muitos candidatos vinham de variadas localidades do Brasil. As pessoas eram avaliadas fenotipicamente e questionadas sobre suas vivências pela banca examinadora, para concorrerem ou não às cotas raciais.
Notei três aspectos sociais: primeiramente, a dificuldade da população negra em acessar concursos públicos do DF, consequentemente, à oportunidade de melhoria financeira e status social. Em segundo lugar, os candidatos negros relataram casos semelhantes de maus tratos estatais, problemas socioeconômicos, preconceito racial com interseccionalidade, racismo recreativo, desprestígio social da cultura e relacionados às características físicas negroides; associação do fenótipo negro à criminalidade e à pobreza, dificuldades de autoaceitação, autoestima desregulada e (auto)inferiorização recorrente. Em terceiro lugar, ainda de acordo com a amostragem, a maioria da população não possui um letramento racial, o que dificulta o senso crítico e o combate ao racismo.
O trabalho lembrou-me de como é ser um homem negro em Brasília, onde existe um índice elevado de racismo. Tive a oportunidade de visitar e/ou morar em localidades como Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Montreal e Nova York e não me recordo de ter sofrido tanto racismo como no DF. Tenho vivido na cidade há 15 anos, especialmente em locais de classes média e alta, e o racismo recreativo era intermitente durante a minha juventude, causando-me uma reação enérgica, a qual descreviam como “mimimi” e "descontrole emocional".
Enquanto jovem adulto, em alguns ambientes que frequentei no Distrito Federal, ainda eram proferidas frases que ansiavam por minha inferiorização, associação à pobreza e deseducação, tais como: “UnB com cota é fácil” e “Você deve ser pobre”. O DF apresentou-me o racismo em sua estrutura macro e micro da sociedade, mas também me fez lembrar dos meus antepassados e refletir sobre o meu futuro.
Não obstante essas questões individuais e coletivas sobre problemas raciais no DF, podemos observar como o caminho de igualdade racial é possível. Embora seja envolto por percalços, essa mudança social pode continuar ocorrendo com o apoio da organização política, do sistema educacional, das relações sociais, econômicas e jurídicas; por meio do debate público, da mídia, dos movimentos sociais e da luta sociopolítica, que contribuem para a população negra requerer espaços sociais e (sobre)viver dignamente.
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