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Prêmio Nobel

Artigo: Como o mundo funciona

Ditaduras não devem nada à civilização, enquanto tiverem amigos civilizados. O mal só prospera se tiver a companhia dos bons

Foto datada de 25 de junho de 2007 mostra o ativista de direitos humanos da oposição iraniana, Narges Mohammadi, no Centro de Defensores dos Direitos Humanos em Teerã       -  (crédito: BEHROUZ MEHRI/AFP)
Foto datada de 25 de junho de 2007 mostra o ativista de direitos humanos da oposição iraniana, Narges Mohammadi, no Centro de Defensores dos Direitos Humanos em Teerã - (crédito: BEHROUZ MEHRI/AFP)
postado em 08/10/2023 06:00 / atualizado em 08/10/2023 07:38

Por PAULO DELGADO — Sociólogo

O Comitê da premiação do Nobel da Paz na Noruega insiste e não desiste ao conceder, mais uma vez, a uma mulher perseguida por regimes violentos o mais importante Prêmio da Paz. Mesmo sabendo que a premiação não é antídoto contra a tirania. Ditaduras não devem nada à civilização, enquanto tiverem amigos civilizados. O mal só prospera se tiver a companhia dos bons.

Outra vez é uma mulher perseguida, presa, maltratada e humilhada que recebe o maior prêmio para quem luta pelos Direitos Humanos no mundo. De nada adiantará à laureada iraniana Narges Mohammadi, condenada a 154 chicotadas e 31 anos de prisão, recorrer aos amigos do Irã no Brics para interceder por ela. A política internacional se move por sua própria decência e diante de interesses a perda do embaraço do pudor escancara a feiura que se tornou a diplomacia mundial.

A prisão de Evin, onde está Narges, é chamada a Universidade de Evin tantos são os intelectuais, estudantes e jornalistas presos. Todos os que lutam contra o regime e são apanhados pela "polícia moral do país", antes de serem eliminados, vão para lá. Criada pelo Xá Reza Pahlev em 1972 nos arredores de Teerã, hoje faz parte do movimentado norte da cidade. Com 15 mil detentos, Evin é um dos principais caminhos da tortura, execução, abuso, espancamento, enforcamento e desaparecimento dos países árabes que misturam petróleo, religião e cobiça.

Petróleo, religião e arma são os três mais fortes impulsos febris do movimento e da submissão que alimenta os motores misteriosos da alma árabe. Nada parecido com a poesia e os poetas persas, hoje desconhecidos e se vivesses estariam presos em Evin. A atmosfera asfixiante que a política de monopólio econômico, militar e teológico, comum à luta política na região, aumenta a cada dia, temperada pelos aliados internacionais que querem um Irã em chamas e um Oriente Médio enfurecido. Tudo ali é precedente, passado ou tradição que sufoca o futuro consolidando uma política do se-enquadre-ou-morre.

Mas a distorção da identidade do povo árabe não pode ser colocada somente na conta de seus líderes. Quem lhes ofereceu a fórmula de subjugar a sociedade civil, instalando-a entre três famílias — a do petróleo, a da teocracia e a dos militares —, foram as sofisticadas França e Inglaterra, enfastiadas dos pecados dos seus reis. Criaram países artificiais governados por leis de exceção e submetidos a tribunais de fé ou de farda, mantidos pela habilidade repressora e corrupta de seus tiranos. Rompida a estabilidade atômica do mundo ocidental, após a queda da União Soviética, ficou claro que Washington e Moscou substituíram Londres e Paris. Se os Brics quiserem se meter na região é notória autoindulgência histórica.

Não é bem a tradição de luta política e partidária que alimenta a revolta contra poderes de fato, familiares e militares. Todos são ditaduras mais ou menos ferozes e as revoltas eram esperadas e queridas diante da degradação da vida humana que passou de todos os limites. Nada, pois, é novidade no agitado mundo árabe que nunca aceitou seus governantes completamente. Sempre foram usuários da hipocrisia do mundo ocidental, países democráticos que oferecem apoio para expandir sua influência no mundo islâmico. Até o Brasil, país também de árabes, quer tirar proveito da falta de pudor mundial e explorar a cultura de conflitos e sectarismo presente no Oriente Médio contra a identidade autêntica dos brasileiros.

Porém, o que o Nobel reflete são os movimentos por liberdades primárias, represados por décadas, que não pouparão, por razões geopolíticas, socioeconômicas e culturais, nenhum país. São ideias elementares de democracia que chegam muito tarde numa das regiões mais oprimidas e certamente ainda vão ajudar a mudar como o mundo funciona.

Com manipulação religiosa, militarismo e petróleo como energia mundial é um destino traçado de decepção ter esperança na melhoria dos governos árabes. Assim como terminou, de forma patética, o entusiasmo, que nos anos 80, levou o Aiatolá Khomeini a liderar a revolução iraniana do exterior contra o Xá Reza Pahlevi. Quando pousou em Teerã no avião da Air France, cedido pelo governo francês o que a velha esperança instalou foi o Governo de Deus da República islâmica do Irã.

Com o novo regime, o completo obscurantismo teológico-militarista mais se fortaleceu e a prisão de Evin continuou a ser um símbolo do país. Os tiranos quando morrem não sepultam a tirania que os sustentava, permanecendo como fantasmas do mal que fizeram. Que o Nobel da Paz tenha força simbólica para enterrar a devoção de adular déspotas e recusar o autoritarismo arraigado na região. 

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