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Artigo: O grande negociador

Henry Kissinger foi a figura mais importante da política internacional no fim do século 20 e personagem fundamental para o fim da guerra do Vietnã, em que os Estados Unidos foram derrotados

PRI-0412-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0412-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)
André Gustavo StumpfJornalista (andregustavo10@terra.com.br)
postado em 04/12/2023 06:00

Henry Kissinger, alemão que migrou junto com a família para os Estados Unidos em 1938, fugiu do nazismo, recebeu a cidadania norte-americana, serviu ao Exército e junto com o esforço dos Aliados retornou a Alemanha, na qualidade de soldado das forças de libertação. Trabalhou para os serviços de informação. Foi o início de sua vida profissional de conselheiro, capaz de modificar a política internacional de maneira jamais vista para ser obra de um homem só. Voltou da guerra e foi para Harvard, onde se formou summa cum laude (com a maior das honras) no mestrado, doutorado e, finalmente, aceito como professor daquela famosa instituição. Richard Nixon o buscou na universidade para assumir o cargo de assessor de assuntos internacionais do presidente dos Estados Unidos.

Transformou-se na figura mais importante da política internacional no fim do século 20. Ele foi personagem fundamental para o fim da guerra do Vietnã, em que os Estados Unidos foram derrotados, mas conseguiu o prodígio de mudar o foco naquele momento para os bombardeios promovidos pela força aérea norte-americana nos países vizinhos. Apesar disso, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Ele era adepto da realpolitik, ou seja, do minucioso estudo da realidade e aceitar os dados fornecidos pelo exame dos fatos. Ele sempre foi crítico da política externa norte-americana temperada por visões religiosas e concepções clássicas de governo.

Na América Latina, seu nome provoca ressentimentos. Foi um dos que incentivaram Washington a apoiar ditaduras no Cone Sul. Argentina, Chile, Uruguai e Brasil passaram por governos militares, dentro da ótica norte-americana, que não queria conviver com governos de esquerda "no seu quintal". Essa concepção resultou em milhares de mortes de opositores, péssima fama do governo Nixon na América Latina e uma narrativa difícil de ser reparada até hoje. O Chile, em especial, sofreu muito com as deportações e mortes, inclusive a de Allende. Na Argentina, os militares chegaram a jogar do avião oposicionistas vivos no Rio da Prata.

No caso específico do Brasil, ele conviveu com o inesperado. O extraordinário diplomata, o ministro Azeredo da Silveira, recebeu Kissinger em clima amistoso e irônico. ("My dear Henry"). Os norte-americanos nunca viram com simpatia a presença de brasileiros em Angola. Eles apoiavam a guerrilha da Unita, chefiada por Jonas Savimbi, que estava em luta aberta contra o Movimento de Plena Liberdade de Angola (MPLA), comandado por Agostinho Neto. Kissinger não foi bem-sucedido nesse esforço. Quando as forças armadas da África do Sul invadiram Angola para acabar com o governo comunista, o Brasil, do presidente Geisel, enviou navios com gêneros alimentícios, para ajudar os habitantes de Luanda, cidade que estava sitiada. O governo de Cuba, em uma semana, enviou dez mil soldados e equipamentos militares para defender a cidade. As forças sul-africanas foram expulsas de Angola. O Brasil dos militares se aliou aos comunistas cubanos.

São detalhes na imensa história de Kissinger. Ele percebeu que poderia utilizar a China para abrir uma brecha no bloco soviético. China e União Soviética possuem a mais longa fronteira do mundo. Sempre mantiveram relações distantes e, às vezes, conflitantes. Eram comunistas, cada um à sua maneira. O governo chinês era um pária no mundo das relações internacionais. Kissinger propôs o reconhecimento formal do governo e abriu o caminho para forte investimento do capital internacional no país. Os líderes chineses, naquela fase, diziam que "ser milionário é glorioso". A China não era nada do ponto de vista econômico naquele momento. Hoje, é a segunda maior economia do mundo.

Há muito a ser dito sobre Henry Kissinger. Há o lado notável do escritor que pode ser colocado ao nível de Winston Churchill, o primeiro-ministro inglês que não cedeu diante das ameaças de Hitler. Ele lembra o inglês que disse: "Não se recorre ao estadista para resolver questões simples. Estas, com frequência, se resolvem sozinhas. É quando o equilíbrio estremece e as proporções estão envoltas na bruma que se apresenta a oportunidade para decisões que podem salvar o mundo" (Henry Kissinger, Liderança, seis estudos sobre estratégia, Objetiva). O livro de Kissinger sobre a China (About China, Objetiva) é fundamental para quem desejar estudar a história daquele grande país.

Kissinger, independentemente da posição de quem o analisa, é um grande personagem do século 20. Fez gestões pela paz na guerra de 1973 entre judeus e palestinos, iniciou o processo de limitação das armas nucleares de Estados Unidos e União Soviética, influiu nos destinos de vários locais do mundo. Trata-se de um gênio da política externa, que, naturalmente, gerou desafetos aqui e ali. Em 100 anos de vida, que se encerraram na semana passada, deixou sua marca na política e na história do Ocidente.

 


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