Artigo

Comida, uma solução para os impasses

As avós decretavam: nada de polêmica à mesa. E, se reunissem os líderes dos conflitos armados cuja culinária tem tanto em comum e propusesse uma trégua no estilo vovó? O que aconteceria? Não faltam opções no cardápio

Em meio a um mundo às voltas com três grandes conflitos armados — Israel x Irã; Gaza; Rússia x Ucrânia — e que o nível bélico está elevadíssimo, a memória das minhas avós vem à mente. De um lado, uma ítalo-portuguesa, do outro, uma libanesa. Duas cozinheiras de mão cheia, que tinham certeza que tudo se resolvia com uma boa refeição, de preferência bem farta, e com muitos convidados. Outro detalhe: à mesa, haveria espaço para todos, de um jeito ou de outro. Também existia uma série de regras, mas uma em especial: nada de temas indigestos.

Delas, confesso, herdei o prazer de cozinhar, a satisfação de reunir pessoas queridas em torno da refeição e a convicção de que a comida tem o poder de resolver impasses. Nem todos, claro, mas muitos e de forma geral. Trazendo para o momento atual, basta observar as culturas gastronômicas e as semelhanças entre os adversários nas guerras em curso.

Israelenses e iranianos seguem os preceitos religiosos nas refeições — nada de origem suína e jejum em datas específicas. Russos e ucranianos têm a tradicional e deliciosa borsch, creme de beterraba com caldo de carne enriquecido com creme de leite fresco. Para a Ucrânia, o prato nasceu lá. Na Rússia, o mesmo se diz. Em Gaza, os primos judeus e palestinos têm muito em comum à mesa: ambos amam grão-de-bico, lentilhas, azeite de oliva, tâmaras, damascos, nozes e ervas frescas, além de especiarias, como canela, cominho e açafrão.

Se minhas avós Eunice e Ismênia, ou Yasmin em árabe, aqui estivessem usariam a autoridade conferida a elas pela lei natural da vida e a legislação informal que rege tão distinta categoria, para decretar momentos de trégua para uma boa refeição. Certamente, elas colocariam moral nos homens autoritários e enraivecidos, simplesmente desprezando o poder bélico e econômico. Nem um certo senhor no comando do país mais poderoso do mundo escaparia.

Da minha memória de criança, ecoam as frases. "Agora, vamos comer. Nada de briga", dizia uma delas. "Nesta casa, não se fala de política, religião e futebol, estamos entendidos?", afirmava a outra, encerrando qualquer tentativa de perpetuação da controvérsia. Como num passe de mágica, o silêncio e a harmonia imperavam por algumas horas — da entrada à refeição principal e a sobremesa e o cafezinho para os adultos porque "criança não pode".

Bom seria retornar há meio século quando jamais se imaginaria sentar numa calçada ou escada para "comer qualquer coisa" em poucos minutos "porque não dá tempo". Um tempo em que as avós, do alto de seu poder, ordenavam e controlavam tudo. Estranhamente os comandantes em guerra pertencem a regiões cujos povos têm tanto orgulho de sua história e suas conquistas, sobretudo do conhecimento ancestral. Impossível pensar em Israel e na Palestina, sem lembrar de passagens bíblicas, do Irã, dos poemas persas, da Rússia e da Ucrânia, dos grandes filósofos, artistas e atletas. Mas nada que não se resolva com uma boa e bela mesa...   

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