José Horta Manzano — empresário
Se fosse possível ir dormir, logo mais à noite, e só acordar nos anos 2030, descobriríamos um mundo bem diferente do que conhecemos hoje. As mudanças não serão impactantes, detectáveis ao primeiro olhar. O arroz e o feijão continuarão a frequentar o prato do brasileiro, o Sol continuará estalando mamona, as aves que aqui gorjeiam continuarão gorjeando melhor que lá.
Talvez, o assustado recém-desperto precise observar o mundo por uns dias, conversar aqui e ali, ler as notícias. Vamos deixar essa leitura das notícias entre parênteses por enquanto. Mais adiante, vosmicê vai entender o porquê.
Até outro dia, o planeta já não andava bem. Guerras mortíferas e intermináveis na Ucrânia e na Palestina; a França expulsa de suas antigas colônias africanas, que preferiram o guarda-chuva russo; na Venezuela, em El Salvador e na Nicarágua, a ditadura apertando cada dia mais o torniquete. Não, as coisas não andavam nada bem.
O povo dos Estados Unidos teve a — a meu ver, infeliz — ideia de eleger Donald Trump para a presidência. Há apenas nove meses no poder, ele tem tomado atitudes do arco da velha. Por decreto, lançou um festival de aumentos nos impostos de importação, afetando praticamente todos os países, e o Brasil em especial. Deu o tiro de largada a uma verdadeira caça às bruxas na mídia: quem não disser o que ele quer ouvir será perseguido. Estrangulou as finanças das universidades que não se comportassem como ele queria.
Na feliz expressão de Garry Kasparov, tradicional estrela do enxadrismo, Trump pôs os EUA em processo de "putinização". Kasparov referiu-se à crescente tomada de controle, determinada por Trump, da formação universitária dos jovens americanos e da triagem prévia da informação, visando abafar toda voz crítica ou discordante antes que circule. Por "triagem", entenda-se censura.
É permitido supor que, ao despertar daqui a seis ou oito anos, vosmicê se depare com os Estados Unidos espoliados do regime democrático que um dia serviu de farol ao mundo. Terão se tornado um país de regime autoritário, fechado, semiditatorial, hostil a estrangeiros, um país no qual o cidadão pensará duas vezes antes de fazer uso da palavra ou de postar um comentário nas redes.
Se os Estados Unidos fossem um país de segunda linha, o fato de seu regime ter endurecido não traria problemas ao planeta. Mas trata-se do país mais rico e mais poderoso, o que causa, sim, um problemão. Um país fechado e hostil não terá mais os requisitos para ocupar um dos polos do tabuleiro mundial. Dessa forma, os grandes países terão se tornado ditaduras ou semiditaduras: EUA, China e Rússia entram nesse figurino.
O Brasil, por seu lado, segue sua trajetória particular. Num momento de recrudescência autoritária das grandes potências, nosso país não aceita mais o papel de submisso ou avassalado. Nossa índole e nossa vivência não admitem receber ordens de potência nenhuma, nem Washington, nem Pequim, nem Moscou. Com diplomacia voltada para a paz, prezamos nossa independência e nossa soberania.
Um mundo de governança multipolar é o que o Brasil tem almejado nestes últimos tempos. Acordar daqui a alguns anos e constatar que todos os polos dessa nova governança são potências ditatoriais será um choque. E uma decepção. Nesse contexto, o Brasil dificilmente se entregará de peito aberto a uma das doutrinas dominantes. Nosso país não aceitará transformar-se em mero parafuso na engrenagem das potências.
A situação trará um problema. Sem aderir plenamente à órbita de atração de nenhum dos polos dominantes, como fazer para nos manter firmes na defesa de um sistema aberto, democrático, pluralista e humanista, quando todos ao redor tiverem sucumbido à lei da selva? O Brasil está condenado a flutuar, sem órbita fixa, como elétron livre no vácuo. Até quando resistiremos à força de atração das potências maiores?
Nossa escolha será complicada. Por um lado, temos de pensar no custo de uma luta solitária para manter nossa soberania e nossas liberdades. Por outro, temos de considerar o preço a pagar pelo abandono das liberdades que conseguimos conquistar com tanta luta.
Há fortes indícios de que teremos de refletir sobre o tema dentro em breve. Diante do dilema, teremos de decidir. É possível que nosso cacife não seja suficiente para nos permitir ficar em cima do muro.
