José Sarney — ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
Há duas sextas-feiras, escrevi nesta coluna sobre o encontro entre o presidente Lula e o presidente Trump. Ambos se conheceram, se abraçaram e trocaram cortesias no encontro de 38 segundos. A declaração dos dois foi de que o encontro gerou uma química entre eles; química esta que se desdobrou nas semanas seguintes em declarações de simpatia e de amizade que desembocaram num telefonema de meia hora em videoconferência, combinando um encontro pessoal. Afirmaram que a excelente conversa abriu caminho para o início de negociações para encontrarem uma solução para o problema das taxas altíssimas aplicadas ao Brasil e o término de uma conduta de relações ásperas entre os dois países.
- Leia também: Paz que seja paz
Ouvi de Gilberto Amado, o bom escritor do livro de memórias Minha mocidade no Recife, quando eu e ele, em 1961, estávamos na 16ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que as nações não têm sentimentos, e, sim, interesses. Assim, risquemos da nossa compreensão amor-ódio-amizade-carinho ou qualquer manifestação de sentimentos abstratos que as pessoas têm, e os países, não. Depois, devido à convivência com muitos diplomatas, descobri que essa conduta não era somente uma frase do Gilberto Amado, mas um ensinamento da diplomacia sobre o relacionamento entre os países, seu objeto maior.
Assim, não esperemos que somente palavras possam mover montanhas. Estas estão na geopolítica entre Brasil e Estados Unidos, mas não através dos interesses políticos que o presidente americano possa ter manifestado em favor de um candidato à Presidência da República, e, sim, no que considero o mais profundo obstáculo das relações em atrito nestes últimos meses com os americanos: o Brics. Este, sim, uma demonstração concreta de interesses do Brasil contrários aos dos Estados Unidos — e o presidente Lula usou uma retórica contundente ameaçando o Tio Sam de acabar com o dólar nas negociações do bloco. Isso é um tiro no coração. Em seguida, o presidente Trump aplicou a mesma tarifa do Brasil à Índia, o que considero ter o mesmo motivo.
Mas a diplomacia utiliza, como namoro e troca de beijos, as palavras, e estas ainda são poderosas no relacionamento entre ministérios de Relações Exteriores, órgãos encarregados da retórica sem engajamento, deixando as decisões para as altas cúpulas de todas as nações. Por isso, o que temos ouvido depois dos tapas e beijos tem sido somente beijos, sem deixar marca na cueca, mas, nem por isso, menos significativos do pensamento das chancelarias.
- Leia também: Sem recuo na defesa da soberania
Do longo telefonema entre os presidentes, pouca coisa de essencial transpareceu, apenas declarações de "foi ótimo": Trump disse que o presidente do Brasil era um "excelente homem", um "homem bom", enquanto Lula, bem vivido e melhor político, ficou na retranca e limitou-se a dizer "A conversa foi boa".
A coisa começou agora a pegar pela nomeação do secretário Marco Rúbio, que é tido como ideológico de conveniência, como interlocutor do governo americano. Ele tem sido afirmativo, sem papas na língua, dizendo que o Brasil que espere a Lei Magnitsky, aquela que já foi aplicada ao ministro Alexandre de Moraes por suas posições e seus votos no Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Na linha de interesses e sentimentos, acredito que, como dizia Carlos Lacerda, o interesse é permanente, o sentimento é volátil — e o ódio é fingido. Este está no exclusivo domínio do teatro: é para o público.
- Leia também: O perigo vem do Norte
Nessa linha de raciocínio, a Índia e o Brasil, que foram no passado solidários aos Estados Unidos e lutaram pela democracia e pelas ideias liberais, parelha da América de Jefferson, na sua difusão da inspiração americana, representantes da liberdade e do "Bill of rights", formando tropas para lutar em favor desses países, agora estão unidos com China e Rússia no Brics.
Brasil e Índia não podem negociar o Brics, já consolidado, são países em busca da maior participação na política mundial. Daí decorrem os 50%. Nós e a Índia veremos como serão as relações com Europa e Estados Unidos, no presente e no futuro, com uma realidade diferente.
Beijos sim, virgindade nunca.
Saiba Mais
