TELEVISÃO

Uma festa pobre

A tentativa de redescobrimento da própria identidade da população brasileira pós-ditadura militar à época da primeira exibição de Vale Tudo

Quando Vale tudo foi exibida pela primeira vez, em 1988, o Brasil aprendia a respirar depois de uma ditadura, ensaiava passos incertos rumo à estabilidade e nós buscávamos entender, finalmente, quem éramos — e, sobretudo, o que estávamos dispostos a ser como nação. Foi nesse contexto que Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères construíram um retrato implacável da alma brasileira: uma sociedade fascinada pelo sucesso, mas corroída pela falta de ética. A pergunta que ecoava da televisão — "Vale a pena ser honesto no Brasil?" — era, acima de tudo, um grito coletivo de desconforto. 

O Brasil de 2025 é o da hiperconectividade, da monetização da opinião e da influência digital como novo capital simbólico. O que mudou, então, não foi a corrupção em si, mas a forma como ela é metabolizada: agora, ela é performática, estetizada, parte do entretenimento. O remake de Vale tudo, assinado por Manuela Dias, em vez de oferecer reflexão, ofereceu engajamento; em vez de provocar incômodo, ofereceu distração.

A Vale tudo de 1988 denunciava o Brasil que se vendia ao primeiro atalho — o da esperteza, da vantagem, do "jeitinho". A de 2025 parece celebrar esse mesmo vício sob o disfarce do carisma, do humor, do "conteúdo viral". O texto original punha o dedo na ferida da desigualdade e da ética corrompida; o texto atual esfregou maquiagem em cima da ferida para torná-la mais palatável aos algoritmos.

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É possível, portanto, ler as duas novelas como radiografias sociais de seus tempos. Em 1988, a televisão podia educar, provocar e questionar. Já 2025 aceita que a telinha — assim como o cinema, a política, a religião — se submeta à lógica de mercado e à linguagem das redes. O público, por sua vez, é outro: ansioso, acelerado, disperso. Se, há 37 anos, o espectador se reunia no sofá para assistir à novela e conversar sobre ela no dia seguinte, hoje ele se reúne nas redes para comentar o corte, o meme, a frase de efeito.

A pergunta, então, se inverte: o público empobreceu intelectualmente, ou apenas foi moldado a consumir de outra forma? O que antes exigia atenção e sensibilidade, hoje precisa caber em quinze segundos e despertar reação imediata. Talvez não sejamos menos inteligentes — apenas menos dispostos a esperar. O problema é que, ao reduzir a profundidade da ficção, a indústria também reduz a capacidade crítica do espectador.

Em 1988, Vale tudo apontava para uma esperança: a de que a arte pudesse desvelar a podridão das elites e inspirar alguma ética coletiva. Em 2025, o remake transforma essa denúncia em espetáculo, faz da vilania um fetiche e da corrupção um produto vendável. O merchandising e o "trend topic" substituíram a indignação e o debate. A novela deixou de questionar o "vale tudo" moral do país para apenas participar dele — e lucrar com isso. 

O mais triste é que, talvez, a mudança não esteja apenas na televisão, mas em nós. O público de 1988 acreditava na arte como espelho e queria "mostrar a sua cara"; o de hoje, anestesiado por excesso de informação e falta de sentido, é convidado "para esta festa pobre" e parece aceitar qualquer reflexo — desde que brilhe. 

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