JORGE SANTANA, profeessor doutor em história do Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campo Largo
Nas décadas iniciais do século 20, o futebol brasileiro dava os seus primeiros passos e despontavam os grandes clubes de hoje. O primeiro grande craque brasileiro era "pardo": Arthur Friedenreich, que era filho de um alemão com uma professora negra, tinha a pele negra clara, alguns traços negroides e um cabelo encrespado. Por ser fruto de uma relação inter-racial, Arthur tinha passabilidade, às vezes ele até conseguia se passar por branco no círculos da alta sociedade paulistana. Mas, em 1921, o presidente brasileiro Eptácio Pessoa proibiu os jogadores negros de serem convocados para a Seleção nacional. O motivo: no ano anterior, um jornal argentino publicou uma charge retratando os jogadores brasileiros como "macaquitos", pois a Seleção era composta por uma parcela de jogadores negros.
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A Seleção que disputou o Sul-Americano na Argentina em 1921 era alva como a neve, mas fracassou sem os jogadores negros. Já Friedreich, que, às vezes se passava por branco e buscava prender o seu cabelo ao máximo para esconder a ascendência africana e era o maior jogador daquela Seleção, também não foi convocado — pois ser pardo é ser negro.
Um debate que era intríseco ao movimento negro se ampliou, nos útimos meses, por meio de uma polêmica. A atriz negra Camila Pitanga participou do podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown, e afirmou: "Sou negra. Eu nunca me achei parda. A questão é como me veem e como eu me vejo. Eu me vejo como uma mulher negra em movimento". Essa fala gerou um posicionamento do movimento que se autodeclara "parditude". Segundo o movimento, a atriz deveria ter se autodeclarada parda, já que tem a pele clara e é fruto de uma relação inter-racial. A situação evoluiu para ataques baixos e que levantavam dúvidas sobre a identidade racial da atriz negra.
Polêmicas à parte, pretendo aqui jogar luz sobre as categorias raciais do país ao longo do tempo. A construção étnico-racial brasileira de origem lusitana tem como tradição o colorismo — ou seja, uma ampla gama de distinções raciais que abrange pessoas desde aquelas de cor retinta, pessoas de cor clara, pessoas frutos de relações inter-raciais. Isso forjou identidades raciais parcialmente fragmentadas, apresentando uma possibilidade de mobilidade social e pequenos privilégios, o quanto mais clara é a pele da pessoa negra.
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Aqui na Pindorama (Brasil), o movimento negro tem mobilizado duros esforços para construir uma consciência política e racial de que as variações de melanina não configuram uma diferença de categoria racial, étnica ou de cor. Em suma, todos aqueles de pele clara ou pele escura, todos aqueles que têm ancestralidade africana são negros.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estabelece como pessoas negras a soma de pessoas pretas e pardas. As vivências e experiências das pessoas de pele negra clara são singulares e distintas das pessoas de pele negra retinta. Muitas passam por um doloroso processo até se autoidendicar-se como negro, pois são desestimuladas a se identificarem como tal. Ao mesmo tempo, são aceitos em determinados círculos sociais por serem "menos negros" ou por não possuirem muitos traços de origem africana.
Dar visibilidade a essas vivências das pessoas negras de pele clara não é um problema, o que configura um erro é a defesa de uma nova identidade específica. O movimento parditude erra agudamente ao defender uma nova identidade e categoria, que fragmenta os negros e deixa para trás evidências históricas que apontam que pretos e pardos formam uma mesma categoria racial e étnica.
A proibição da convocação de jogadores negros (pretos e pardos) para Seleção Brasileira em 1922 é um exemplo histórico de como a leitura social sobre a negritude — clara ou retinta — converge para a mesma categoria racial.
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Todos são identificados como negros em algum momento de sua vida em que encaram o racismo, além do entedimento técnico do IBGE. A busca por uma fragmentação dessa identidade ou categoria racial fortalece aqueles que defendem o mito de um Brasil tão miscigenado em que não há raça/etnia. A história e o cotidiano apontam o contrário, indicam que a raça existe como conceito sociológico e político e, sobretudo, que os negros claros e escuros são pertencentes a uma categoria étnico-racial, que é a negra.
* Esse texto faz parte de vivências que incluem meu saudoso amigo Felipe Barros, uma pessoa negra de pele clara, um lutador enquanto foi possível, aqui, seguimos em luta!
