Na semana da Consciência Negra, discutir representatividade no audiovisual brasileiro deixa de ser um gesto simbólico para se tornar uma urgência ética. O caso envolvendo Taís Araújo e o compliance da TV Globo sobre o tratamento de sua protagonista no remake de Vale tudo reacende um debate antigo, mas ainda longe de ser superado: quando corpos negros ocupam o centro da narrativa, quem escreve e conduz essas histórias precisa compreender o peso político e simbólico de cada escolha dramática. Não se trata de concessão, mas de responsabilidade.
A queixa de Taís revela uma ferida exposta. Raquel, personagem que nas mãos de Regina Duarte, em 1988, representava uma trajetória de ascensão e firmeza, surge na nova versão esvaziada em pontos estratégicos, perdendo conquistas, conflitos e densidade, especialmente na reta final. Não é um detalhe: é um deslocamento que repete padrões. A autora Manuela Dias, responsável pelo remake, já havia sido questionada pela forma como desenhou personagens negras que deveriam ter centralidade — a da mesma Taís Araújo em Amor de mãe e de Jéssica Ellen em Justiça, sem falar na excessiva morte de vidas pretas em suas ficções. São recorrências que apontam para um ponto sensível: quando narrativas protagonizadas por pessoas negras passam por mãos que não compreendem totalmente sua complexidade histórica e social, a ficção tende a reproduzir apagamentos em vez de combatê-los.
A repetição não é coincidência, e sim sintoma de um letramento incipiente. Por isso, a presença de autores e diretores negros nas posições de comando é determinante. Quando as decisões criativas são tomadas por pessoas que entendem a experiência negra por vivência, e não apenas por observação, as narrativas ganham espessura, verdade e dignidade. É o que se vê, por exemplo, no trabalho da dupla Renata Andrade e Thais Pontes em Encantados, que equilibra humor, cultura e ancestralidade com frescor; na dramaturgia de Elísio Lopes Jr., que assinou Amor perfeito e prepara Nobreza do amor, obras que tratam de identidade, religiosidade e afeto com força narrativa; e no anúncio do jovem Juan Jullian como autor solo, sinal de que o futuro pode, enfim, caminhar para modelos mais plurais.
É igualmente justo reconhecer autoras brancas que entenderam seu lugar dentro dessa estrutura e atuam com responsabilidade. Rosane Svartman, em Vai na fé e agora em Dona de mim, mostrou sensibilidade ao criar personagens negros com profundidade e atitude, fortalecendo sua equipe com roteiristas negros que ampliam a perspectiva da obra. Claudia Souto fez o mesmo em Cara e coragem e Volta por cima, cuidando para que o elenco negro tivesse espaço simbólico e dramático coerente — não à toa, ela criou, em ambas, núcleos em que os ricaços eram pretos. Há diferença entre falar sobre a experiência do outro e silenciá-la, e elas demonstram essa consciência.
A televisão brasileira está em um ponto de inflexão. O público mudou, o país mudou, e a teledramaturgia precisa acompanhar. Quando protagonistas negros são enfraquecidos, não é apenas um equívoco artístico, é um retrocesso político. Mas quando novas vozes — negras, diversas, autorais — ganham espaço e reconhecimento, não estamos apenas corrigindo uma injustiça histórica; estamos expandindo a própria imaginação do país. A representatividade verdadeira não está apenas na presença em cena, mas no poder de decidir quais histórias importam e como elas serão contadas.
