Disponibilização de novos remédios no SUS extrapola prazo previsto em decreto

Com a campanha A regra é clara, ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose e Crônicos do Dia a Dia promovem o debate sobre o impacto dos atrasos na oferta de novos medicamentos aos pacientes

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postado em 04/12/2020 21:02 / atualizado em 29/01/2021 13:15
 (crédito: Divulgação | CDD e Ame)
(crédito: Divulgação | CDD e Ame)

O processo para que um novo medicamento ou tratamento esteja disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), do aceite de sua incorporação até a efetiva disponibilização ao paciente, deve levar 180 dias. Esse é o prazo previsto no artigo 25 do Decreto Presidencial nº 7.646/2011, que, por vezes, não é respeitado. Em alguma parte desse trâmite, remédios ficam travados, impedindo que alcancem seu objetivo maior: melhorar a qualidade e até mesmo salvar a vida de pacientes.

Tomando a linha de frente desta causa, as organizações não-governamentais Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e a Crônicos do Dia a Dia (CDD) lançaram a campanha A regra é clara, com o objetivo de propor o diálogo entre comunidade médica e pacientes, profissionais da saúde e gestores públicos, a fim de promover e estimular o interesse da população na esfera política da saúde e administração pública.

A incorporação de novos medicamentos e tratamentos no SUS é feita a partir de consultas públicas realizadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Em caso de decisão favorável a um produto, as áreas técnicas do Ministério da Saúde devem efetivar a oferta no prazo de seis meses, contados da data de publicação da portaria no Diário Oficial da União.

Neste período, é elaborado um PCDT (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas) e, paralelamente, há a pactuação entre os gestores das três esferas (federal, estadual e municipal) a respeito da responsabilidade pelo financiamento do remédio de alto custo. Ou seja, para saber se o medicamento vai ser distribuído entre os estados ou se é o Ministério da Saúde que irá receber a verba e depois repassar para cada um dos âmbitos.

A partir da pactuação e da criação do PCDT, o medicamento será incluído, por meio de uma portaria da Secretaria de Especialização da Saúde, na tabela do SUS e passa a ser possível faturá-lo e prescrevê-lo.

O atraso dos remédios vem sendo uma rotina dos pacientes do SUS
O atraso dos remédios vem sendo uma rotina dos pacientes do SUS (foto: Divulgação | CDD e Ame)

Mas levantamento realizado pelo time de consultores sanitaristas da AME e da CDD mostra a falta de cumprimento à regra instituída pelo poder executivo de diversas maneiras.

Uma delas é com o atraso do medicamento omalizumabe, indicado para asma grave, doença que mata cinco pessoas por dia no Brasil. Já o composto sacubitril/valsartana, indicado para o tratamento de insuficiência cardíaca crônica sintomática, teve sua aprovação pela Conitec em 9 de agosto de 2019, mas segue não disponibilizado. No relatório da própria Comissão, foi publicado que, em comparação ao enalapril, a utilização dessa tecnologia reduziu em cerca de 20% as mortes por causas cardiovasculares ou hospitalização por insuficiência cardíaca, e em cerca de 16% os óbitos por qualquer causa, em pacientes com idade menor ou igual a 75 anos.

O levantamento ainda enumerou o atraso na disponibilização do aflibercepte – tratamento indicado para edema macular diabético. Sua disponibilização deveria ser efetivada para toda a população até julho de 2020 e até agora não foi concluída.

 “Enquanto o Estado fica num jogo de jogar a responsabilidade para um ou outro, pacientes com doenças graves, raras e que necessitam de medicamentos de alto custo sofrem com a falta de terapias eficazes, que não apenas prolongam tempo de vida, como proporcionam qualidade para essas vidas”, comenta Bruna Rocha, vice-presidenta da AME e gerente-Geral da CDD.

Segundo o advogado sanitarista e consultor jurídico da AME/CDD, Paulo Benevento, o que se tem percebido é que medicamentos já incorporados ficam obstruídos em alguma parte do processo, seja na incorporação ao PCDT, seja na pactuação, seja na expedição desta portaria para incluir na tabela do SUS. Deste modo, “o que acontece não é um problema de logística para entrega ou armazenamento do medicamento e sim um problema nos trâmites pelo qual o medicamento passa, devido à falta de consenso”, afirma Benevento.

Para o advogado e especialista em Advocacy em Saúde Tiago Matos, falta transparência nos processos e há atrasos de entrega de medicamentos já aprovados para distribuição no sistema público de saúde, especialmente no momento pós-incorporação da tecnologia. Matos sugere a criação de um painel de status pós-incorporação no qual seja possível visualizar em que etapa essa tecnologia se encontra no processo para sua efetiva oferta, uma vez que, com o prazo de 180 dias vem também a expectativa para hospitais, médico e, sobretudo, para quem aguarda ansiosamente pelo novo medicamento incorporado.

A responsabilidade de fiscalizar e regularizar tais processos é do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União, no que se diz respeito às licitações públicas que ocorrem entre as farmacêuticas para o fornecimento do remédio. “Apesar disso, as associações de pacientes podem ajudar a contribuir ativamente para o cumprimento dos prazos, já que representam a ponta mais interessada e afetada dessa história”, comenta Benevento. Nesse sentido, a campanha A regra é clara chega com o intuito de promover o debate sobre o tema e esclarecer o impacto que estes atrasos causam na vida dos pacientes.


Mudança de vida

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Enquanto o remédio não vem, a vida de quem precisa de um medicamento de alto custo também ganha uma contagem embargada pela ansiedade e pela incapacidade de mudança. Por isso, crescem, dia após dia, os processos de judicialização para o acesso a um tratamento.

O omalizumabe teve uma resposta positiva da Conitec quanto à sua incorporação ao SUS, por meio da portaria nº 64, assinada no dia 27 de dezembro de 2019. Desde março deste ano, a atualização do PCDT para o tratamento de asma grave está em andamento sem previsão de conclusão. No total, somam-se mais de 300 dias de atraso para que o remédio seja parte da tabela do SUS.

Dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia apontam que 20 milhões de pessoas convivem com asma no Brasil e cerca de 3% a 7% desse grupo desenvolvem a forma grave da doença. Por ano, são cerca 2,4 mil mortes provocadas pela asma. Mortes que poderiam ser evitadas caso a doença fosse controlada de forma eficaz.

Estudos médicos comprovaram que, em um ano, 90,5% dos pacientes com asma grave foram hospitalizados pelo menos uma vez devido à exacerbação por asma (60% reportaram mais de cinco hospitalizações em um ano). Desses, 50% necessitaram de internação em UTI devido a uma exacerbação e 38% reportaram intubação. Em uso no Brasil desde 2005, o omalizumabe bloqueia a ação da proteína IgE, anticorpo que causa inflamação nos brônquios e provoca uma resposta alérgica do sistema imunológico, produzido em alta quantidade por pessoas com asma.

“A incorporação de imunobiológicos – classificação farmacológica da qual o omalizumabe faz parte – pode representar a diferença entre viver e morrer. O impacto na qualidade de vida é imenso, mas podemos considerar os impactos sociais e econômicos que eles apresentam, uma vez que este tratamento – que é comparado com uma roupa sob medida, já que atua diretamente na causa do quadro inflamatório – devolve a produtividade a quem o utiliza, reduzindo o número de medicamentos diários e internações. A vida de muitas pessoas pode ser mudada por uma pressão popular porque pede apenas o cumprimento de uma regra e por isso nossa luta é tão importante. Queremos garantir o direito de viver com qualidade”, diz a presidenta da Associação Brasileira de Asmáticos, Dra. Zuleid Mattar. O remédio custa entre R$ 2 mil e R$ 12 mil, a depender da quantidade e da dosagem.

Iracema Miguel, 43 anos, é uma das pacientes à espera de regulamentação dos processos da Conitec. Há 30 anos com diagnóstico de asma grave e um quadro de falta de ar cotidiano, recebeu a prescrição mensal do omalizumabe da equipe médica do laboratório de asma do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo o doutor Rafael Stelmach, presidente da Fundação ProAr e professor doutor da Divisão de Pneumologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, essa é uma tecnologia segura e usada nas instituições de saúde suplementar e hospitais públicos de referência no Brasil há anos. “Este atraso de incorporação representa anos de possibilidade de melhores tratamentos para a população que convive com asma. Nesse atraso histórico que já vivemos, quem mais precisa fica sem acesso e vai piorando, até que alcance um quadro ainda mais grave da doença”, comenta Stelmach.

Iracema sonha com o momento em que terá suas injeções disponíveis. “Sinto um misto de esperança e frustração por estar há tanto tempo esperando por algo que pode melhorar minha vida”, desabafa.

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