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Regras de leniência sem o aval da PGR

Órgãos do governo e STF assinam acordo de cooperação sob a justificativa de promover maior segurança jurídica a acordos firmados com empresas flagradas em crime. Documento não tem aval do MPF e abre brecha para que o órgão seja excluído dos pactos

JORGE VASCONCELLOS e RENATO SOUZA
postado em 07/08/2020 00:37
 (crédito: Reprodução)
(crédito: Reprodução)

Sem contar com apoio do procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, assinou, ontem, em sessão fechada, um polêmico acordo de cooperação com o governo, que prevê novas regras para a homologação de acordos de leniência — contratos firmados com empresas condenadas por corrupção. Até então, o Ministério Público Federal (MPF) tinha o protagonismo nesse tipo de acerto. Somente no Paraná, a Lava-Jato firmou 14 acordos, que produziram multas de R$ 12,4 bilhões, a serem pagas nos próximos anos.

A cooperação assinada por STF, Controladoria-Geral da União (CGU) e Advocacia-Geral da União (AGU) abre brecha para que o MPF e a Polícia Federal sejam excluídos das negociações dos acordos.

“O acordo de leniência, previsto na Lei Anticorrupção, é instituto novo no nosso ordenamento jurídico, completando sete anos no último dia 1º. Exatamente por isso, está sujeito a dúvidas e incompreensões, além de naturais conflitos de atribuições, principalmente num país como o Brasil, em que a Constituição e a legislação não conferem a apenas uma instituição o papel de defender o bem público”, argumentou Toffoli, na reunião virtual, que contou, também, com o advogado-geral da União, José Levi; o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio, e o ministro da Justiça, André Mendonça.

O presidente do STF afirmou que o texto da cooperação foi proposto, inicialmente, por José Múcio. “O acordo de cooperação sobre acordos de leniência não cria nem retira competências, pois estas decorrem da Constituição e das leis”, frisou Toffoli.

O magistrado destacou, ainda, que o Supremo participa como uma espécie de testemunha no processo de construção das novas regras. “O texto do acordo não foi produzido pelo Supremo Tribunal Federal. Coube a cada uma das instituições a oportunidade de colocar no texto o seu olhar sobre o problema, facilitando a sua aceitação. O STF, aqui, atuou apenas como mediador do diálogo, encontrando pontos em comum e estimulando o reconhecimento desses pontos pelos partícipes”, emendou.

Avaliação

O PGR, Augusto Aras, aguarda avaliação técnica da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF para assinar o documento. Ele havia pedido mais tempo para analisar o texto e não compareceu à reunião agendada para oficializar o acordo. Dentro do MPF, existe grande resistência ao tratado, tanto que Aras é persuadido a desistir de chancelar o termo. A maior resistência, no entanto, procede das equipes da Lava-Jato, pois esse foi um dos principais métodos da operação para recuperar dinheiro desviado para o exterior ou que foi lavado em esquemas de corrupção.

Aras tem travado intensos embates com as forças-tarefas da operação nos estados, principalmente com a equipe de Curitiba. Ele avalia que ocorreram ilegalidades e exageros na forma com que os procuradores da capital do Paraná conduziram processos e negociações, inclusive, de delação e leniência, o que o deixa hesitante sobre concordar ou não com a posição de Toffoli e do governo.

Em nota, o MPF afirmou que “tem interesse de participar desse órgão coletivo para negociação de acordos de leniência”, mas vai aguardar a manifestação do órgão técnico.

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Cooperação é contestada

A afirmação do presidente do STF, Dias Toffoli, de que o acordo de cooperação é uma “grande conciliação institucional” é contestada não só no MPF — pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão Criminal, que ainda está elaborando uma nota técnica sobre o pacto —, como também por alguns dos principais advogados do país em matéria de acordos de leniência.

Sebastião Tojal, que fechou o acordo da Andrade Gutierrez com o MP primeiro e depois com a Controladoria-Geral da União (CGU), disse que a cooperação, nos moldes em que foi aprovada pelos demais órgãos, não reconhece a competência que, por lei, foi atribuída ao MP para celebrar acordos dessa natureza.

“A iniciativa é bem-vinda, mas o resultado é frustrante. Desconhece o papel que o MP vem tendo com a celebração de acordos que foram importantíssimos, paradigmas, desde 2015”, disse o advogado, que também fechou acordos pela UTC Engenharia e por uma empresa do grupo CCR.

Tojal explicou que o texto restringe à CGU e à AGU a negociação de acordos e prevê que o MPF vai receber informações para promover persecução criminal de pessoas físicas envolvidas com os ilícitos. “Então, não está se reconhecendo ao MPF a sua atribuição legal de tutela também da moralidade administrativa, do Erário, e assim por diante, porque só se reconhece a ele o papel de perseguidor criminal do Estado, sendo que o MPF tem competência para propor ações de improbidade”, destacou.

Hierarquia

Igor Tamasauskas, que representou o grupo J&F em acordo de leniência firmado com o MPF, afirmou que o documento assinado “tem visão hierárquica de um sistema que não funciona com base em hierarquia”. “Você tem uma tentativa de dizer o que cada órgão tem de fazer, só que você não tem um órgão superior a todos esses que possa estabelecer as condutas de cada um deles. Então, um documento desse tipo deveria dialogar com outro tipo de lógica: a de sincronizar atribuições, e não no sentido de dirigir, porque não tem um órgão superior ao outro”, frisou o advogado.

Como funcionará

Pelo documento de cooperação assinado ontem, a CGU e a AGU comprometem-se a, durante negociações para firmar acordos de leniência, compartilhar informações com o TCU para que o tribunal possa agir de acordo com sua competência, à medida em que as informações forem sendo recebidas.

Da mesma forma, a CGU compromete-se a informar ao MPF e à PF o envolvimento de pessoas físicas em crimes que estejam sendo investigados em procedimentos abertos com base na Lei Anticorrupção e com base na Lei de Improbidade Administrativa, igualmente, se isso não comprometer os trabalhos do órgão.

Por sua vez, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União devem acionar a CGU e a AGU se surgir a possibilidade de assinatura de acordos de leniência, no curso de investigação sobre crimes praticados por empresas, desde que a medida não coloque em risco trabalhos em andamento.

Principais acordos

Veja quais foram os mais destacados contratos de leniência

Braskem: pelo contrato, pagará R$ 2,87 bilhões até janeiro de 2025

Odebrecht: aceitou pagar multa de R$ 2,72 bilhões

Andrade Gutierrez: comprometeu-se a repassar R$ 1,49 bilhão

SBM Offshore: concordou em pagar R$ 1,22 bilhão

UTC Participações: acertou com o poder público pagamentos de R$ 574 milhões

MullenLowe e FCB Brasil: firmaram acordo para retornar R$ 53,1 milhões

Bilfinger: concordou em pagar R$ 9,8 milhões para evitar punições

Admissão de culpa

Os acordos de leniência, previstos na Lei Anticorrupção de 2013, formalizam a admissão de crimes por parte de empresas e o compromisso delas de prestarem informações para auxiliar investigações, tendo como contrapartida o alívio em eventuais sanções. O problema é que, muitas vezes, há disputa entre os órgãos para saber quem deve negociar um acordo com uma determinada empresa.

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