"O Estado não pode ser infrator", diz ministra Cármen Lúcia, sobre relatórios "antifascistas"

Em julgamento no Supremo, AGU e PGR tentam minimizar produção de relatório de servidores "antifascistas" e ouvem da ministra um forte discurso em defesa dos direitos fundamentais. Magistrada vota pela suspensão da elaboração do dossiê

Sarah Teófilo
Renato Souza
postado em 20/08/2020 06:00
 (crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
(crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Com forte discurso em prol da democracia, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) — relatora de uma ação da Rede Sustentabilidade que questiona a elaboração de dossiê contra opositores do governo —, votou para que seja suspensa, de imediato, qualquer investigação do tipo no âmbito do Ministério da Justiça. A Corte começou a julgar, nesta quarta-feira (19/8), uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) apresentada pelo partido, que pede, inclusive, “abertura de inquérito pela Polícia Federal para apurar eventual prática de crime por parte do ministro da Justiça e Segurança Pública (André Mendonça) e de seus subordinados”. O julgamento continuará hoje.


O caso foi parar no STF após vir a público a informação de que o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) da pasta, levantou informações de 579 policiais de movimento antifascista e professores universitários. Integrantes desse grupo fazem oposição ao governo e relataram perseguições em seus respectivos órgãos durante o trabalho.


Dias após a divulgação da existência do dossiê — pelo portal UOL —, Mendonça demitiu o diretor da Seopi e determinou abertura de sindicância. Nesta semana, de acordo com fontes ouvidas pelo Correio, ele ligou para os ministros do STF para se explicar.


Em seu voto, Cármen Lúcia destacou que Mendonça afirmou não ter solicitado ou tido acesso a qualquer dossiê, mas que não negou que o documento exista. Inclusive, por determinação da magistrada, entregou cópias do levantamento para todos os integrantes da Corte.


O advogado-geral da União, José Levi, pediu o indeferimento da liminar pedida na ADPF, destacou que o governo está definindo uma política nacional de inteligência e se compromete a seguir, no setor, diretrizes definidas pelo Supremo. “A União rejeitando toda e qualquer forma de autoritarismo ou de totalitarismo, aí incluído o fascismo, roga a este Supremo Tribunal Federal que seja indeferida a liminar pleiteada na presente ADPF”, disse.


O procurador-geral da República, Augusto Aras, também minimizou o relatório. Ele afirmou que as informações constantes no documento são abertas, ou seja, podem ser encontradas, por exemplo, nas redes sociais. Ele disse não ver ilegalidade e defendeu a rejeição da ADPF. “Os chamados relatórios de inteligência apresentam, na verdade, uma compilação de dados e informações extraídos de fontes abertas. E quais são essas fontes abertas? Por incrível que pareça, aquelas que estão acessíveis a todo e qualquer indivíduo: Instagram, Facebook, YouTube e manifestos publicados nas redes sociais.”


Cármen Lúcia, porém, discordou. Ela viu ameaças ao regime democrático e práticas semelhantes às ocorridas no regime militar, quando o Brasil vivia sob ditadura. “O proceder de dossiês, pastas, relatórios, informes sobre a vida pessoal dos cidadãos sobre suas escolhas não é nova neste país, e não é menos triste termos de voltar a esse assunto quando se acreditava que era apenas uma fase mais negra de nossa história”, disse. “Não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para escolher informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade.”

Dúvida

De acordo com a ministra, não se sabe se existem outros relatórios do tipo. Ela citou o trecho de respostas enviadas por Mendonça ao STF após ser questionado sobre o caso. “Apenas para enfatizar que qualquer autoridade que afirme ‘isso já era de conhecimento, vinha de muito tempo’: o ministro da Justiça diz nos autos, escreveu, assinou e encaminhou que só teve conhecimento de possível existência do relatório pela imprensa”, prosseguiu ela. “Benza Deus a imprensa livre do meu país, benza Deus que temos ainda Judiciário que tem conhecimento disso e que dá importância devida para garantia da democracia no sentido de a gente verificar do que se trata, do que é e qual a resposta constitucional a ser dada”, enfatizou.


A magistrada completou destacando que, se de fato não existisse nenhuma investigação do tipo, Mendonça teria negado. “Alega o autor que estaria havendo investigação ou dossiê ou relatório ou informe sobre a vida pessoal de alguns indivíduos em razão de suas posições ideológicas. A pergunta é simples: existe ou não existe? Se existe e está fora dos limites constitucionais, isso é lesão a preceitos fundamentais. E se não existe, basta dizer que não existe. Mas, como eu li na data de ontem (terça-feira), o que recebi foi o esclarecimento muito sincero do ministro da Justiça. O ministro não solicitou qualquer relatório, só teve conhecimento de sua possível existência pela imprensa. Não é dito ‘não é dossiê, não há relatório’. Não é dito. Não é conjectura, não é ilação e não é interpretação”, emendou.

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