Bolsonaro na ONU

Ajuda de US$ 1 mil, só para mãe solteira

Auxílio emergencial chega, em média, a pouco mais de US$ 700. Presidente divulga informações incorretas sobre queimadas e pandemia, mas acerta ao falar de ajuda a índios

Renato Souza
postado em 23/09/2020 01:16
 (crédito:           Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 27/4/20                          )
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 27/4/20 )

O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), além de polêmico, apresenta inconsistência de informações de diversos setores, que vão da economia, passam pela saúde, e o meio ambiente. A informação que mais chamou atenção dos especialistas e repercutiu na internet diz respeito ao auxílio emergencial. Nas palavras do chefe do Executivo, o valor dos pagamentos repassados às famílias se aproximou de US$ 1.000. No entanto, a informação não corresponde à realidade, pois o valor pago até hoje, mesmo com parcelas adicionais, que serão liberadas até dezembro, representa um valor médio de R$ 3.907 por pessoa, o equivalente a US$ 715. O valor de US$ 1 mil só teria sido pago a mães solteiras, que recebem o dobro. Em relação ao meio ambiente, Bolsonaro chegou a afirmar que a alta temperatura é responsável pelas queimadas na Amazônia, além de culpar a Justiça por entraves no combate ao coronavírus.

Ontem, após o fechamento do mercado, de acordo com os dados do mercado financeiro, o dólar estava cotado em R$ 5,46. A moeda norte-americana tem-se mantido acima dos R$ 5,40 nas últimas semanas. Com este valor, para se atingir o equivalente a mil dólares, o governo brasileiro teria de pagar R$ 5.400 para cada beneficiário. No entanto, até agora, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, já foram liberados R$ 231 bilhões para bancar o programa. Eram R$ 153 bilhões até julho, para custear até a 5ª parcela do benefício. No entanto, com a definição de mais quatro pagamentos de R$ 300 até o final deste ano, foram liberados mais R$ 101 bilhões, e posteriormente, R$ 67 bilhões em crédito extraordinário, neste mês.

De acordo com o governo, 66 milhões de brasileiros estavam aptos a receber o auxílio à época do pagamento da primeira parcela, o que leva a um valor final, por beneficiário, de R$ 4.800, abaixo dos mil dólares. Nos pagamentos seguintes, o número de pessoas atendidas foi caindo, e a segunda parcela foi sacada por 63 milhões de pessoas, e a terceira por 56,2 milhões. Já a quarta, por 43 milhões, e as novas parcelas, de R$ 300, terão novos critérios, que podem excluir muitos cidadãos.

Em nota, a Rede Brasileira de Renda Básica rebateu as afirmações de Bolsonaro. O presidente da entidade, Leandro Ferreira, explica que na prática, o benefício fica em pouco mais de US$ 100 por mês. “Na média, o total dos pagamentos não ultrapassa sequer US$ 500. Mensalmente, o benefício era de 110 dólares. Agora, com o corte pela metade, está em 55 dólares — renda que está abaixo do patamar usado pelo Banco Mundial para definir pobreza, que é de US$ 5,50 por dia”, afirmou.

De acordo com informações obtidas pela reportagem do Correio, o governo está utilizando, para a conta, a cotação do dólar de 26 de março deste ano, quando o auxílio começou a ser liberado, e a moeda norte-americana estava fixada em R$ 5,00. Paola Carvalho, diretora de relações institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, afirma que o país foi um dos mais afetados pelas perdas econômicas da pandemia. “Em todo o mundo a pandemia foi mais um momento de concentração de renda e no Brasil, onde a desigualdade é astronômica, as consequências foram ainda mais perversas, empurrando milhões de brasileiros para a fome e a pobreza. É hora do Congresso Nacional fazer sua parte para reduzir essa injustiça”, afirma. A associação, junto com outras 300 instituições, se mobiliza para que o Congresso aprove a extensão do benefício no valor de R$ 600 até dezembro.

Ações na pandemia
Logo no começo do discurso, ao criticar a imprensa, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu à Justiça uma suposta limitação dos poderes do governo federal para atuar no combate ao avanço do coronavírus pelo país. Esta não é a primeira vez que o chefe do Executivo usa uma decisão do Supremo para embasar seu discurso. No entanto, em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que estados e municípios têm poder para definir regras do isolamento, e podem, por exemplo, fechar estradas e estabelecer quarentena. No entanto, as prerrogativas do governo federal para estabelecer medidas sanitárias não foram retiradas.

Pela decisão da Corte, o presidente, assim como demais integrantes do governo, podem aprofundar medidas sanitárias, como estabelecer isolamento em escala nacional, desde que não relaxem ações dos governos locais. Na prática, o Supremo entendeu que a responsabilidade das ações de combate a pandemia devem ser compartilhadas pelos governos estaduais, municipais e o federal.

No discurso para a ONU, Bolsonaro afirmou que foram empenhados, até o momento, cerca de US$ 400 milhões para a produção de uma vacina contra a covid-19. O número está levemente exagerado, mas tem respaldo. A União destinou R$ 1,9 bilhão para pesquisas de Oxford e desenvolvimento de vacinas no Brasil. Esse montante equivale a US$ 350 milhões.

O presidente também afirmou que o governo “assistiu mais de 200 mil famílias indígenas com alimentos e insumos para tratamento da covid”. Esta afirmação é verdadeira. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), foram distribuídas 250 mil cestas básicas e 1 milhão de equipamentos para tratamento da pandemia entre os povos tradicionais.

Queimadas
Ao falar do meio ambiente e rebater acusações de omissão do governo sobre queimadas na Amazônia, o presidente afirmou que “incêndios no mesmo lugar causados por índios em áreas já desmatadas”. A responsabilização das queimadas aos indígenas gerou reações e críticas — e, mais importante, não condiz com os fatos. Nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) revelou que apenas 7% das queimadas no ano passado ocorreram em terras indígenas.

O presidente também disse que “os incêndios ocorrem no entorno leste da floresta, em áreas já desmatadas”. Mas dados da Nasa, divulgados no ano passado, apontam que 54% dos focos têm origem em desmate promovidos por fazendeiros e madeireiros ilegais.


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Entidades rebatem dados e afirmações

 (crédito: Daniel Nepstad/Divulgação)
crédito: Daniel Nepstad/Divulgação

Entidades ligadas ao meio ambiente e à saúde contestaram as declarações do presidente Jair Bolsonaro na ONU. A coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Mariana Mota, frisa que as falas do presidente em relação a indígenas são inverídicas. De acordo com ela, 56% dos focos de incêndio identificados na Amazônia foram em áreas privadas e da União — terras que, segundo ela, atraem a cobiça de invasores e grileiros. “Apenas 8% são em áreas de terras indígenas. Essa população, na verdade, sofre com as invasões”, disse.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que na Amazônia, este mês de setembro já acumula mais focos de calor que todo o mês de setembro do ano passado, assim como o mesmo período em 2018. No caso de desmatamento, de agosto de 2019 a julho deste ano, foram desmatados 9,2 mil km² de vegetação da Amazônia Legal, o que representa um aumento de 34,6% em relação ao mesmo período anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em nota, o Observatório do Clima, rede formada em 2002 e composta por 50 organizações não governamentais e movimentos sociais, afirmou que as declarações de Bolsonaro geram fuga de investidores do país. “O presidente, mais uma vez, expôs o país de forma constrangedora e confirmou as preocupações dos investidores internacionais que pensam em sair do Brasil. Ao negar simultaneamente a crise ambiental e a pandemia, o presidente dá a trilha sonora para o desinvestimento e o cancelamento de acordos comerciais no momento crítico de recuperação econômica pós-covid”, ressaltou a nota.

Combate à covid-19
Em relação à pandemia, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) disse em nota que “o que decidiu o STF, como já reiterado por diversas oportunidades, foi sobre o exercício de competências concorrentes entre os entes de uma federação”. “Longe de afastar a competência da União, o STF apenas decidiu que estados e municípios, diante da inércia do ente maior, têm o direito de planejar e executar as medidas de enfrentamento à grave pandemia de covid-19 no Brasil”, frisou.

A entidade ressaltou, ainda, que o país “ainda se ressente de uma coordenação nacional para o enfrentamento da doença, o que obviamente não se dá apenas com envio de insumos e recursos”. “A resposta efetiva a uma crise sanitária deveria se dar, como ocorreu em outros países, com uma coordenação articulada que envolva a prevenção e o controle da doença nos três níveis da federação”, informou.


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