Renda Cidadã

Proposta de financiamento do Renda Cidadã recebe críticas

Especialistas e operadores do mercado apontam uma série de problemas em proposta de financiar novo programa que vai substituir o Bolsa Família com recursos do Fundeb e com rolagem de precatórios, considerada uma espécie de "calote" na dívida ou mesmo "pedalada"

Rosana Hessel
postado em 28/09/2020 18:40 / atualizado em 28/09/2020 23:01
 (crédito: Divulgação/Setras/TO)
(crédito: Divulgação/Setras/TO)

Especialistas e operadores do mercado criticaram a proposta de financiamento do Renda Cidadã, programa que vai substituir o Bolsa Família. As queixas se concentram, principalmente, no fato de o novo programa utilizar recursos de precatórios, que são dívidas de ações judiciais do governo.

Na avaliação de analistas ouvidos pelo Correio, o governo estará institucionalizando uma forma de "calote", ou até mesmo uma "pedalada", com a proposta apresentada nesta segunda-feira (28/09), pelo senador Marcio Bittar (MDB). Em resposta ao plano do governo com o Renda Cidadã, a Bolsa de Valores caiu e o dólar voltou a subir, registrando a maior alta em quatro meses. O real foi a moeda que mais desvalorizou hoje e frustrou a expectativa do mercado de recuperação. O otimismo, com o governo prometendo anunciar tudo hoje e retomando a agenda reformista, ficou para outro dia.

"O dia tinha tudo para ser de recuperação. No entanto, o anúncio de que o governo iria usar a rolagem dos precatórios como fonte de financiamento do programa Renda Cidadã criou apreensão entre investidores que viram na manobra certo calote. É uma palavra forte e não concordamos com esta leitura, mas o rumor foi este. O dólar experimentou alta expressiva que foi contida por um leilão de à vista", destacou André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos.

“Vale lembrar que precatório judicial é requisição de pagamento pelo Judiciário contra o ente público vencido em processo judicial. O montante é inserido no Orçamento para o exercício seguinte, conforme o § 1º do art. 100 da Constituição Federal. O não pagamento não constitui outra coisa senão ‘calote’ do governo e acaba desaguando na Justiça”, explicou o advogado e professor Ricardo Pantin.

Ele lembrou que a a concretização do bem-estar social, previsto na Constituição de 1988, depende de planejamento e intervenção direta do Estado, com aplicação rigorosa de leis orçamentárias como principal mecanismo. “É louvável que o governo tenha a preocupação com a manutenção e incremento de programas sociais e de distribuição de renda. Mais do que isso. É fundamental. Mas fazê-lo com prejuízo de precatórios e do Fundeb é, além de evidente desvio, de evidente inconstitucionalidade. No caso dos precatórios, a moratória para pagamento das parcelas ou a quebra da cronologia geram o direito do credor de pedir o sequestro de verbas públicas com autorização da própria Constituição, o que aumenta a judicialização, por consequência, também porque o não pagamento tem como uma das consequências a caracterização de ato de improbidade administrativa (incisos I e II do art. 11 da Lei 8.429/92)”, explicou.

A segunda fonte de recursos do Renda Cidadã apontada por Bittar é utilizar até 5% dos repasses adicionais da União para o novo Fundeb, que passarão dos atuais R$ 10 bilhões para R$ 23 bilhões ao longo dos próximos anos, para ajudar na manutenção das crianças na escola.

O especialista em contas públicas Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, considerou as duas “muito ruins, do ponto de vista fiscal”. “Não se cancela precatório. O que se faz é jogar pra frente. Ao limitar pagamento a 2% da receita corrente líquida, você simplesmente escolhe pagar uma parte e escolhe jogar pra frente outra parte”, afirmou. Pelas contas dele, dos R$ 55 bilhões previstos para o pagamento de precatórios no Orçamento do ano que vem, R$ 16 bilhões serão pagos e 39 serão postergados.

“Ocorre que, quando não se paga precatório, a LRF diz que isso se incorpora à dívida. E nem precisaria dizer, porque se você tem um gasto obrigatório pra fazer no presente e não faz, você fica devendo e juros vão incidir sobre essa dívida. Contabilidade criativa parece estar retornando.... Preocupante”, acrescentou Salto.

Em relação ao Fundeb, a inclusão das despesas do Renda cidadã, “vai ser uma forma de bypass no teto”, porque o Fundeb, desde a origem do teto, é uma exceção à regra. “Colocar mais coisas dentro dele é ruim. Podemos estar abrindo a caixa de pandora e começa a usar de subterfúgios pra contornar o teto.... Quer mostrar ‘para o inglês’ que está tudo bem, mas na verdade está aumentando gastos sem cortar outras despesas”, lamentou o diretor executivo da IFI.

O economista Jose Luis Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), também criticou o uso das despesas com precatórios para financiar o Renda Cidadã. “Parece que o governo não tem a menor ideia de onde ele quer chegar. A questão dos precatórios e os esqueletos estava resolvida na Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, o governo vai dar um calote nos precatórios. Isso vai na contramão do que ele prometeu em campanha e colocou uma claraboia no teto”, destacou.

Gil Castello Branco, secretário-geral da Organização Contas Abertas, também criticou a proposta, principalmente, o uso dos recursos do Fundeb. "O presidente disse que não iria tirar dinheiro dos pobres, mas propõe tirar das crianças e adolescentes. A idéia além de comprometer o futuro e é uma burla ao teto de gastos. O uso de recursos dos precatórios apenas empurra dívidas com a barriga, em uma  'corrente da infelicidade', desrespeitando o Judiciário" . "O que deveria fazer e não faz e regulamentar o teto e usar os gatilhos previstos para a contenção das despesas", sugeriu. 

Para Castello Branco, o Tribunal de Contas da União (TCU) poderá travar o andamento dessa proposta. "Não creio que o TCU irá aceitar a burla ao teto e a 'pedalada dos precatórios'", destacou.

No fim do dia, a Associação dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma nota da Comissão Especial de Precatórios da entidade considerando a proposta de financiamento do Renda Cidadã por meio dos recursos destinados ao pagamento de dívidas judiciais "inconstitucional", além de trazer insegurança jurídica e ser injusta socialmente. Segundo o documento assinado pelo presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e pelo presidente da Comissão, Eduardo de Souza Gouveia.

 

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