GOVERNO

Dívida da União com precatórios mais que dobrou desde 2015

Montante devido a cidadãos e empresas que ganharam batalhas judiciais contra a União chega a R$ 53,4 bilhões este ano — valor mais do que dobrou desde 2015, quando estava em R$ 24,1 bilhões reservados no Orçamento

Alessandra Azevedo
postado em 12/10/2020 06:00
 (crédito: Sérgio Lima/AFP - 18/3/20)
(crédito: Sérgio Lima/AFP - 18/3/20)

Historicamente bilionárias, as dívidas da União, dos estados e dos municípios com precatórios batem recordes anuais. Nos últimos cinco anos, o montante devido a pessoas e empresas que ganharam batalhas judiciais contra a União mais que duplicou: saltou dos R$ 24,1 bilhões reservados no Orçamento de 2015, para R$ 53,4 bilhões, este ano. Para 2021, o governo federal prevê um gasto de R$ 55,5 bilhões com precatórios. O levantamento foi feito pela ONG Contas Abertas, a pedido do Correio.

Já recorrente há anos, a preocupação com o pagamento dessa dívida aumentou no mês passado, quando parte da cifra passou a ser considerada como possível fonte de financiamento do novo programa de transferência de renda que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar no lugar do Bolsa Família, o Renda Cidadã. Depois da repercussão negativa, a ideia foi afastada pelo governo, mas abriu o debate sobre as pendências com pessoas que venceram batalhas na Justiça e esperam receber o dinheiro ao qual têm direito.

Somando a dívida da União às de estados e municípios, os valores devidos em 2019 por determinação judicial chegaram a R$ 183,6 bilhões, levando em conta, inclusive, autarquias e fundações. Os dados são do mais recente Mapa Anual dos Precatórios, divulgado na última quinta-feira pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Significa dizer que o Brasil deve o equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) a cidadãos e empresas que ganharam ações judiciais contra algum dos entes.

A espera costuma durar meses ou anos até que o dinheiro entre na conta, após a determinação do pagamento dos precatórios, à qual não cabe recurso. Segundo o Conselho da Justiça Federal (CJF), mais de 175,2 mil pessoas estão na fila para receber os valores em 2021. A previsão é de que, no ano que vem, sejam quitadas dívidas relativas a mais de 110 mil processos vencidos contra a União.

Os maiores valores costumam ficar no âmbito do Ministério da Economia. O ex-Ministério do Planejamento, que hoje integra a pasta da Economia, pagou R$ 91,5 bilhões em precatórios nos últimos 10 anos — recorde entre todos os órgãos da União, pelo levantamento da ONG Contas Abertas. O da Economia pagou R$ 78,4 bilhões no mesmo período. E o extinto Ministério da Previdência Social, agora também parte da Economia, desembolsou R$ 50,5 bilhões na última década para quitar precatórios.

Não é de se espantar que a reação ao anúncio de que esse dinheiro poderia ser usado para pagamento de um novo programa social tenha sido alarmante. A “rolagem” dessa dívida é vista como um calote bilionário. “A proposta vai na contramão do esforço para quitar os débitos porque protelaria a despesa. A cifra, que já aumenta todo ano, cresceria ainda mais, porque os precatórios não vão acabar, o governo simplesmente começaria a empurrar com a barriga”, diz Gil Castello Branco, fundador da ONG Contas Abertas.

“A meu ver, não diz respeito ao Judiciário, mas à contabilidade criativa, postergando despesa. Muito próximo de uma pedalada. O princípio é o mesmo: deixar de pagar e protelar para o ano seguinte”, explica Castello Branco. O especialista ressalta que, além de ser uma pedalada, é “um desrespeito ao Judiciário e aos que conseguiram ganhar causas na Justiça, provavelmente demoraram anos, e ficariam sem expectativas de receber”.

Com entendimento parecido, até a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se posicionou oficialmente e classificou como inconstitucional o uso dessas verbas para arcar com outro tipo de despesa. Seria um “calote da dívida pública judicial”, definiu, em nota publicada em setembro, após o relator do projeto que criará o Renda Cidadã, senador Marcio Bittar (MDB-AC), ter anunciado que essa seria uma das fontes de financiamento do novo Bolsa Família.

A repercussão foi tão negativa que o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisou reforçar mais de uma vez que o governo não vai usar dinheiro reservado ao pagamento de precatórios para qualquer outra finalidade. “É preciso respeitar a lei. Precatório transitado e julgado é dívida certa, ninguém pode brincar com calote”, assegurou, em entrevista coletiva, em 3 de outubro. O relator, Marcio Bittar, ainda não divulgou qual será, então, a fonte de financiamento do programa.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Entes com dificuldades

Embora a União tenha sido capaz de manter as dívidas em dia, apesar de o valor crescer a cada ano, estados e municípios não têm a mesma facilidade. Ao divulgar os números referentes a 2019, na última quinta-feira, o conselheiro do CNJ e presidente do Fórum Nacional de Precatórios (Fonaprec), Luiz Fernando Tomasi Keppen, lembrou que a maioria dos estados e municípios cumpre uma moratória com vigência até 31 de dezembro de 2024. A Emenda Constitucional 99/2017 aumentou o prazo para que os entes quitem os precatórios, em regime especial, de 2020 até 2024.

No Congresso, o período pode ser prorrogado ainda mais, até 2028, se a PEC nº 95/2019, em andamento, for aprovada. O problema é que, “vergonhosamente”, segundo o advogado tributarista Marcos Vinhas Catão, do escritório Catão & Tocantins Advogados, falta punição aos entes que deixam de pagar as dívidas. O ideal seria “cobrar juros maiores e responsabilizar o gestor”, defende. Uma das opções, na visão dele, seria permitir a penhora de bens da União, estados e municípios por falta de pagamento.

Procurador do Estado de São Paulo, Pedro Tiziotti lembra, no entanto, que a capacidade de pagamento dos estados e municípios é diferente da União. O governo federal pode, por exemplo, emitir dívida para pagar compromissos, ainda que esse seja o último recurso adotado. Já os outros entes dependem, basicamente, da arrecadação de impostos, o que dificulta o pagamento, principalmente, em anos de crise. “O fato é que o estado não tem dinheiro, nas atuais circunstâncias, para pagar o que tem de débito. Então, vai acumulando de um ano pro outro”, explica.

Apesar da previsão orçamentária, nem sempre a cifra que entra no caixa cobre todo o valor previsto no Orçamento. Por isso, principalmente em anos de dificuldade fiscal, é comum que estados e municípios peçam adiamento no pagamento dos precatórios. Em março deste ano, por exemplo, a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) defendeu a suspensão temporária de dívidas de longo prazo, devido à queda de receita causada pela pandemia do novo coronavírus. O assunto também segue em discussão entre parlamentares. (AA)

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação