prisão preventiva

Defensores públicos criticam STF por proibição de soltura automática de presos

Na avaliação deles, a decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir soltura automática de detentos após 90 dias da prisão preventiva esvazia o artigo 316 do Código de Processo Penal e prejudica a grande massa que fica esquecida no sistema carcerário

Sarah Teófilo
Jorge Vasconcello
postado em 18/10/2020 07:00 / atualizado em 18/10/2020 07:20
 (crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
(crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

Não foi bem-vista por defensores públicos e especialistas em direito penal a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que não pode haver soltura automática de detentos após o prazo de 90 dias da prisão preventiva. O plenário da Corte chegou a esse entendimento ao julgar o caso do traficante André Macedo, o André do Rap, que conseguiu um habeas corpus, assinado pelo ministro Marco Aurélio Mello, decano do tribunal, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP).


O trecho diz, em seu parágrafo único, que “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. Com a mudança, agora há um prazo para análise de prisão preventiva, algo que não era previsto no CPP. Mas se o juiz não analisar em 90 dias, nada muda, visto que, apesar de a lei especificar que a prisão é ilegal, não há obrigatoriedade de relaxá-la, conforme decidiu o STF.


Defensor público no Rio de Janeiro, com representação em Brasília, Pedro Carriello avalia que o entendimento da Corte “esvazia por completo” o artigo. Ele destaca que o “Supremo sinaliza ao Judiciário a manutenção desse status de massa carcerária”. “Acho que vai na contramão do próprio sentimento da Constituição. No Brasil, a regra é a liberdade, e a prisão é exceção”, afirma.
Carriello ressalta que, antes do artigo 316, já havia a Resolução 87 do Conselho Nacional de Justiça, de 2009, com uma redação parecida. Previa que, se um processo ou inquérito estivesse parado por mais de três meses, com o indiciado ou réu preso, o cartório precisaria encaminhar os autos para o juiz que, após exame, deveria informar à Corregedoria Geral de Justiça, e o relator à presidência do tribunal, as providências que foram adotadas.


A ideia era incentivar o desencarceramento no país, com 400,9 mil presos provisórios — o que representa 45,2% da população carcerária de 886,4 mil. Em meio a isso, o CNJ não sabe, por exemplo, quantos detentos estão em situação como a de André do Rap, com prisão preventiva sem análise do juiz há mais de 90 dias.


Doutor em direito penal, João Paulo Martinelli também diz que a decisão do Supremo esvazia o artigo. Ele frisa que o fundamento da prisão preventiva é o risco ao processo, o perigo à ordem pública; risco de fuga ou ameaça a testemunhas, por exemplo. Quando não há mais esses fundamentos, a prisão tem de ser revogada. “Mas a decisão (do STF) resgatou aquele espírito de que, se o sujeito é suspeito de praticar o crime, a regra é que ele fique preso. O Supremo julgou de acordo com o clamor público.”


Também doutor em direito penal, o criminalista Conrado Gontijo chamou a decisão do STF de “absurdo completo”. “O Supremo, na verdade, legitima uma prisão que a lei considera ilegal e diz que ela não pode ser revogada”, afirma. Para ele, a decisão passa “uma mensagem péssima e esvazia o artigo 316”. “Esse dispositivo vem para proteger uma série de pessoas que não tem condição de acesso ao sistema de Justiça e fica esquecida.”


Secretário de Atuação no Sistema Penitenciário da Defensoria Pública da União (Sasp/DPU), Alexandre Kaiser diz que a análise a cada 90 dias não significa que o detento só pode ficar preso por esse prazo, mas que, passado o período, o juízo precisa renovar a prisão, caso contrário, o preso provisório seria solto. “Não foi a interpretação dada pelo Supremo. Na prática, acho que isso tende a gerar uma acomodação do Judiciário e reduzir esse impacto civilizatório (do artigo 316) para o processo penal”, afirma. Na avaliação dele, o Supremo tomou uma decisão com base num caso, no calor do momento, pressionado pela opinião pública.


Professora de direito constitucional, Eliana Franco Neme avalia que o STF agiu corretamente. “A defesa continua podendo reverter, mas ele (juiz) vai ter de analisar isso caso a caso”, destaca. Para ela, o Supremo não entrou no papel do legislador, mas apenas disse qual é o limite da lei.
A especialista opina que, pensando nos casos de detentos sem recursos, que podem ficar esquecidos no Judiciário, o CNJ poderia estabelecer sanção aos juízes que não se manifestarem a cada 90 dias sobre uma prisão preventiva.


A advogada constitucionalista Vera Chemim vê como positiva a decisão de impedir a soltura automática de presos. “Tem de haver prazo, mas não pode ser o automatismo. Presumo que, de agora em diante, todos esses juízes ficarão mais atentos para que essa prisão não caracterize excesso de prazo”, acredita.

 

Magistrados comemoram


As entidades que representam os juízes comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que, esgotado o prazo de 90 dias para a revisão da prisão preventiva, não deve haver a soltura automática do preso. A presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil, ressalta que o órgão se sente prestigiado pelo entendimento do Supremo.


A AMB apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), na última quarta-feira, no Supremo, contra o artigo 316 do CPP. Apesar da decisão da Corte, o órgão acredita que o colegiado ainda precisa deixar claro que o juiz de primeiro grau fica responsável pela revisão da prisão preventiva somente até a sentença condenatória, e não mais a partir da fase de recursos.


“O entendimento mais correto é que essa norma se dirija ao juiz de primeiro grau e até a sentença condenatória, pelos próprios termos utilizados pela lei. Na fase recursal, você não tem revisão, porque já tem recurso constitucional para isso”, diz Renata Gil.


Para ela, o Parlamento criou a regra para que o número de presos provisórios reduzisse, “mas isso não se aplicaria, na visão da AMB, às instâncias superiores”. Essa regra deve ter aplicação somente até a sentença condenatória de primeiro grau”, acrescenta. A AMB reúne, entre os 14 mil associados, ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), juízes estaduais, trabalhistas e militares. A entidade continuará empenhada na tramitação da ADI.


Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Eduardo Brandão afirma que “ao permitir essa interpretação de que a revogação de prisão fosse automática”, o artigo em questão estava “completamente desconectado da realidade”. “Essa revogação da preventiva não poderia ser automática. A decisão do Supremo está correta”, ressalta.


Brandão destaca que o Supremo entendeu, e a associação concorda, que o Judiciário não tem estrutura para analisar esses casos “de ofício”, ou seja, sem ser provocado. “Se for ficar analisando todas as preventivas, outros casos vão prescrever”, frisa.


Questionado sobre a situação dos detentos mais pobres, dependentes das defensorias públicas, ele diz não acreditar que a mudança esvazie o propósito do artigo 316. “Acho que provocar o Judiciário, qualquer um deles pode fazer. Não vejo como tornar ilegal uma prisão sem requerimento de ninguém. (ST e JV)

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