Nas entrelinhas

"Há razões mais do que suficientes para agentes públicos demonstrarem mais respeito ao cargo que ocupam, retirarem o debate político do nível miserável em que se encontra e fazerem algo genuinamente positivo para o país"

Carlos Alexandre de Souza
postado em 31/10/2020 00:04

Os lunáticos e a realidade

Enquanto atores da política nacional ganham notoriedade por declarações do quilate de “maria-fofoca”, “nhonho”, “lunático” ou “boiola”, a realidade se mostra cada vez mais implacável. A gravidade da situação está a olhos vistos: 13,8 milhões de desempregados, em uma curva ascendente que impõe enormes obstáculos à economia, desafia governos, aumenta a tensão social e causa enorme sofrimento a incontáveis famílias brasileiras. Boa parte, senão todos, desses desocupados faz parte do universo dos milhões de cidadãos que recebem, de maneira provisória, uma ajuda de R$ 300. Esse auxílio, obtido com impacto brutal nas contas públicas, terminará em dezembro. E absolutamente ninguém em Brasília faz ideia de como sustentar uma população equivalente à da França que depende desesperadamente do governo federal para ter o que comer. Quem vai ao supermercado sabe o quão pouco se pode fazer com uma renda igual a menos de um terço do salário mínimo. Os alimentos pressionam impiedosamente a alta inflacionária, e a perspectiva é de carestia até o fim do ano.

Há mais. Esta semana, o dólar continuou a subir incólume rumo aos R$ 6, e o Ibovespa amargou uma queda semanal de 7,2%, a pior desde março, quando explodiu a pandemia. São sinais inequívocos de que a incerteza contamina o sistema financeiro e afasta os investidores, receosos do cenário tormentoso que se anuncia para os próximos meses. Forçado a desembolsar mais de R$ 200 bilhões para pagar o auxílio emergencial e financiar as ações de combate à pandemia, o governo vê a dívida pública próxima de alcançar 100% do PIB. E enfrenta um tremendo impasse no Congresso, ante a necessidade de encontrar recursos para dar continuidade à ajuda emergencial na pandemia — há um par de semanas, falava-se até em ampliar o Bolsa Família — e evitar o rompimento do teto de gastos. Na quinta-feira, o ministro Paulo Guedes, com seu estilo peculiar, foi direto ao ponto: não contem com ele para ingressar em aventuras que violem a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Há situações muito graves também em outras searas, que não recebem a atenção dos figurões de Brasília. O Brasil, assim como muitos países pelo mundo, está há meses com milhões de crianças longe do convívio escolar. Em mais uma perversa demonstração da desigualdade do ensino em território nacional, as perspectivas são tremendamente mais difíceis para os alunos da rede pública. Em várias unidades da Federação — no Distrito Federal, inclusive —, fala-se em volta às aulas somente em março de 2021. Por determinação do GDF, as escolas públicas da capital fecharam as portas em 12 de março de 2020. Significa dizer que uma legião de crianças e adolescentes passará 12 meses em condições ainda mais difíceis de aprendizado. É tarefa das mais complexas avaliar os danos causados a esses jovens e — mais desafiador ainda — buscar maneiras de mantê-los interessados em frequentar os bancos escolares. Para um país com profundas carências educacionais e a pretensão — não passa disso — de ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) trata-se de um drama avassalador. E o que tem a dizer o ministro da Educação? O que falta para os secretários estaduais e municipais promoveram uma ampla frente para salvar o futuro da geração da pandemia? Oito meses de crise sanitária se passaram e, até o momento, não se ouve falar de um movimento organizado dos poderes públicos em defesa daqueles que não têm sindicato, associação empresarial ou estabilidade no emprego para defendê-los: as crianças e adolescentes deste país que não dispõem de meios para ter aulas on-line.

Um último aspecto a lembrar neste difícil momento. Na segunda-feira, milhões de famílias passarão por um Dia de Finados mais difícil do que o habitual. A saudade e a dor do luto serão ainda mais intensas no país em que 160 mil pessoas partiram de maneira trágica. Todas essas razões são mais do que suficientes para agentes públicos demonstrarem mais respeito ao cargo que ocupam, retirarem o debate político do nível miserável em que se encontra e fazerem algo genuinamente positivo para o país.

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