Entrevista

"Ninguém pode ser a supermulher", aponta Maria Cristina Peduzzi, presidente do TST

A primeira ministra a chegar à presidência do TST enfrenta o desafio de comandar a Justiça Trabalhista no momento em que a pandemia revoluciona as relações entre empregador e empregado e as mães cumprem tripla jornada

Ana Dubeux
Ana Maria Campos
postado em 14/03/2021 06:00
 (crédito: Fotos: Fellipe Sampaio/Secom TST)
(crédito: Fotos: Fellipe Sampaio/Secom TST)

Primeira ministra a assumir a presidência do Tribunal Superior do Trabalho, Maria Cristina Peduzzi é a juíza certa no lugar certo, no momento certo. Ela tem a sensibilidade para compreender como as mulheres precisam cumprir jornadas duplas ou triplas, neste momento de pandemia, com home-office, crianças em aula virtual e muitas vezes sem ajuda para o trabalho doméstico. Ninguém pode ser a “supermulher”.
Ela adverte: “Não é possível fazer tudo de forma impecável”. Nesta geração, nunca a Justiça do Trabalho foi tão acionada para equacionar dilemas novos, inesperados, como o embate entre o emprego e a saúde imposto pela pandemia. Em teletrabalho, o TST conseguiu se reinventar. Em teletrabalho, aumentou a produtividade.

Peduzzi viveu a crise sanitária intensamente. Pegou covid-19, sofreu e se restabeleceu. Valoriza os profissionais que a atenderam. “É preciso destacar o papel fundamental dos profissionais da saúde, que atuam na linha de frente contra essa doença, colocando a própria vida em risco em prol do próximo. Eu, particularmente, terei eterna gratidão aos doutores Roberto Kalil, David Uip, Carlos Carvalho, Carlos Rassi e Gustavo Fernandes, que me atenderam com muita eficiência e humanidade quando mais precisei”. A seguir a entrevista.

A pandemia aprofundou a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. As mulheres são as mais afetadas pelo desemprego. Como a Justiça Trabalhista pode reduzir esse fosso?
A principal resposta que a Justiça do Trabalho pode oferecer na correção da desigualdade de gênero é garantir o atendimento da população com julgamentos rápidos, eficazes e compatíveis com os princípios constitucionais da igualdade e da liberdade, além de aplicar os direitos previstos em lei de acordo com cada caso, sem exceder os limites de sua competência. Assim, é possível garantir segurança jurídica à sociedade, assegurando o cumprimento da lei com o espaço assegurado à mulher no mercado de trabalho remunerado.

Quais os principais desafios encontrados pela Justiça do Trabalho na pandemia?
O desafio para a Justiça do Trabalho foi o de continuar atendendo a sociedade, julgando conflitos de forma eficiente, mesmo no cenário da crise. Plenários virtuais e julgamentos telepresenciais, execução do trabalho pela forma remota, com permanente aperfeiçoamento e investimentos em tecnologia, foram implementados com sucesso e estão em permanente aprimoramento. Um exemplo de como a Justiça do Trabalho tem se ajustado rapidamente ao imperativo do isolamento social e garantido a efetiva prestação jurisdicional são os dados de produtividade no período de pandemia. As conciliações e mediações realizadas pela Justiça do Trabalho durante o período de isolamento social, inclusive, estão se mostrando ferramentas fundamentais para a pacificação das relações trabalhistas. Já garantiram a liberação e pagamento de créditos a trabalhadores, asseguraram o cumprimento de normas de prevenção e segurança, além de garantir a manutenção de serviços essenciais à população.

Acredita que o teletrabalho vai mudar as relações de trabalho?
O teletrabalho já era uma opção e uma realidade implementada em alguns setores da economia e até no serviço público. Com as regras de isolamento social, o teletrabalho mostrou-se como a forma mais adequada para algumas atividades continuarem em funcionamento sem perder a produtividade.

O reconhecimento desse fato ganhou destaque no Poder Judiciário com a decisão do CNJ de ampliar o teletrabalho para cargos de chefia e de diretoria no âmbito da Justiça. Um dos fatores para essa mudança, que tem repercussões que modificam a Resolução nº 227/2016 do CNJ, foi o fato de muitos ramos e instâncias do Poder Judiciário terem alcançado um aumento de produtividade no período de trabalho remoto, como exemplo cito o próprio TST, que julgou, em 2020, 318.053 processos, índice 6,3% superior aos números registrados em 2019. Não há como prever o futuro, mas aquelas atividades e setores que alcançaram a mesma produtividade com o teletrabalho poderão permanecer nesse novo regime, o que vai depender da avaliação que empregadores e empregados fizerem desses novos modos de realização do trabalho. Independentemente da escolha, a legislação trabalhista oferece amparo normativo para regular tanto o trabalho presencial, quanto o teletrabalho.

No setor privado, o teletrabalho já estava previsto na CLT desde 2011, ou seja, antes mesmo da Reforma Trabalhista de 2017. Ganhou mais definição com a Lei nº 13.467/2017 e novos contornos em razão da pandemia de covid-19, por meio da Medida Provisória nº 927/2020.

Estamos vivendo um período de alto nível de desemprego. Quem estiver trabalhando vai perder direitos conquistados ao longo de anos?
Foram realizados ajustes na forma como os direitos são administrados para que o principal seja preservado, ou seja, para que as relações de trabalho sejam mantidas e o número de desempregados não cresça ainda mais. Portanto, é sob a perspectiva de que a crise econômica afeta a todos os atores do mercado de trabalho, empregadores e empregados, tomadores e prestadores de serviços, que precisamos enxergar a realidade. Todos perdem com as crises econômicas, o que é necessário fazer é minimizar os prejuízos e distribuir o ônus das relações de trabalho de forma mais equitativa para garantir equilíbrio que permita a máxima preservação de postos de trabalho, mesmo em um cenário de crise econômica.

O trabalhador tem o direito de optar pelo teletrabalho quando há condições de realizar as
atividades de casa? Ou cabe ao empregador decidir isso?
O artigo 75-C, em seus parágrafos, estabelece que a conversão do regime presencial em teletrabalho dependerá de mútuo acordo entre empregado e empregador. Assim, não é um ato unilateral do trabalhador, mas é necessário um acordo entre as partes. Por sua vez, a conversão do regime de teletrabalho para o presencial pode ser determinada de forma unilateral pelo empregador, dentro de um prazo de transição de no mínimo 15 dias. Mas realmente ainda há muitas dúvidas sobre o funcionamento, definições, direitos, vantagens e desvantagens do teletrabalho. Para esclarecer a sociedade e empresas de forma didática, lançamos um material educativo intitulado “Teletrabalho – o trabalho de onde você estiver”. Esse material reúne também dicas de ergonomia e de tecnologia e pode ser baixado no site do TST por quem tiver interesse. (www.tst.jus.br/materiais-educativos).

Como regular regras como jornada de trabalho, descanso, hora-extra, entre outros deveres e direitos dos trabalhadores, em teletrabalho?
Desde a reforma trabalhista de 2017, foi fixado na CLT que o regime de teletrabalho está excluído do capítulo sobre duração da jornada, vale dizer, o empregado em teletrabalho não tem jornada controlada passível de aferição de horas extras. Com o advento da Medida Provisória nº 927/2020, foi estabelecido que o teletrabalho quando realizado por meio de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal não seria computado como tempo à disposição do empregador, regime de prontidão ou sobreaviso, salvo se houvesse previsão em acordo individual ou coletivo. Com a caducidade da MP nº 927/2020, voltam a valer as regras previstas na CLT.

A senhora é favorável ao lockdown?
As medidas de segurança sanitária são de competência do Poder Executivo, que é devidamente assessorado por especialistas da área de saúde para tomar ou não essa iniciativa. Nesse caso, não me cabe como Presidente do TST e do CSJT me posicionar a respeito dessa medida que visa à contenção e à disseminação da covid-19. Digo isso em respeito ao princípio da separação de poderes e da atuação do Poder Judiciário, que deve se posicionar apenas quando demandado, no processo.

Como equilibrar o direito do trabalhador de manter a atividade para sustentar a
família e os cuidados para reduzir a propagação do coronavírus?
Em outras palavras, o cidadão sai para trabalhar para não morrer de fome e morre de covid. Como resolver esse dilema?
Acredito que o auxílio emergencial e o Programa de Manutenção do Emprego e da Renda foram medidas positivas no início da pandemia para aqueles trabalhadores que perderam seus empregos ou tiveram suas atividades suspensas em razão das medidas de contenção à pandemia. Tais medidas foram suspensas e agora estuda-se o retorno delas em razão do novo pico da doença. No entanto, para aqueles trabalhadores que precisam sair de casa para ir trabalhar é preciso apostar e investir nas medidas de proteção à saúde que já foram amplamente divulgadas pelas autoridades sanitárias, como o uso de máscaras, distanciamento social, higiene respiratória, boa higiene das mãos com sabão e água, ou álcool em gel. Todas essas medidas profiláticas reduzem o risco de contaminação para os trabalhadores que precisam continuar atuando nos serviços essenciais. Isso já foi confirmado entre os especialistas.

Como foi a sua recuperação da covid? Está se sentindo bem?
Passar pela covid foi difícil, é uma doença traiçoeira e é necessário investir na prevenção e na vacina. É preciso destacar o papel fundamental dos profissionais da saúde, que atuam na linha de frente contra essa doença, colocando a própria vida em risco em prol do próximo. Eu, particularmente, terei eterna gratidão aos doutores Roberto Kalil, David Uip, Carlos Carvalho, Carlos Rassi e Gustavo Fernandes, que me atenderam com muita eficiência e humanidade quando mais precisei.

Acredita ter sido contaminada na posse do ministro Luiz Fux na presidência do STF?
Desde o início da pandemia, adotei todas as medidas de prevenção ao contágio. No próprio TST, fomos vanguardistas em editar ato para estabelecer o trabalho remoto e manter o mínimo possível de servidores em trabalho presencial. Entretanto, é muito difícil precisar o momento e o local da contaminação quando se trata de um vírus. Ou seja, um inimigo invisível que não deixa rastros perceptíveis a olho nu. Assim, não posso afirmar categoricamente onde e em que momento exato fui contaminada. Certo é que continuo tomando todas as cautelas e cuidados necessários, uma vez que estamos vivendo dias desafiadores.

Acredita que seria uma opção viável que as empresas imunizassem seus empregados?
A aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado no Brasil foi legalizada recentemente (10 de março) pela Lei nº 14.125/2021. A lei autoriza que, após a vacinação dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, implementado pelo Governo Federal, as pessoas jurídicas de direito privado que quiserem adquirir as vacinas devem doar 50% do total adquirido para o SUS e o restante poderá ser utilizado de forma gratuita, vacinando seus empregados, por exemplo. Importante enfatizar que vários requisitos precisam ser observados para que as empresas vacinem seus empregados de acordo com a nova lei: o primeiro deles é que já tenham sido vacinados os grupos prioritários; superado isso, o segundo requisito é que doem metade da compra ao SUS; e, por fim, a vacinação dos empregados deve ser feita de forma gratuita. Acredito que tal iniciativa constitui meio de acelerar o processo de vacinação para toda a população e é bem-vinda.

As mulheres, mais cansadas, cobradas como nunca, segundo pesquisas, redobraram a carga de trabalho nessa pandemia. Aconteceu o mesmo com a senhora?
O contexto da pandemia é desafiador para todos nós. Não há um ser humano que não tenha enfrentado limitações, restrições, dificuldades e desafios nesse período complexo que a humanidade vive. Comigo não foi diferente. O trabalho à frente da Presidência do TST e do CSJT demanda muitas horas de dedicação e de empenho, que vão além de uma jornada convencional de trabalho. Com o advento da pandemia, as atribuições tradicionais da Presidência ganharam novos contratempos e adversidades, que precisaram ser solucionados em tempo recorde para garantir o atendimento da população com a efetiva prestação jurisdicional. A Justiça do Trabalho não pode parar, pois trata de verbas de natureza alimentar e de questões complexas que afetam a vida de milhares de pessoas físicas e jurídicas. Acrescido a esse volume descomunal de trabalho, como todos, também enfrento os novos protocolos de higiene e segurança, que demandam tempo. Assim, falar apenas no dobro de trabalho é um eufemismo.

O que a senhora recomenda às mulheres com tripla jornada de atividades?
Minha maior recomendação às mulheres com dupla ou tripla jornada de trabalho é que dividam as tarefas domésticas e as responsabilidades familiares de forma equitativa entre os integrantes da casa. Sei que não é fácil, mas tentem não se deixar sobrecarregar com atividades que são responsabilidade de todos os membros da família. É preciso conscientizar que o trabalho com a casa é dever de todos. Mas para que isso aconteça é necessário diálogo e mudanças culturais. Outro ponto é que as mulheres precisam fugir da armadilha de que se pode ter tudo com qualidade. Ao administrar a vida pessoal e o trabalho, a meta deve ser aquilo que é possível, pois a mera ideia de supermulher está fora de qualquer realidade possível e palpável. Por isso, é preciso ajuste, gerenciamento e renúncias. Não é possível fazer tudo de forma impecável.

Em relação à Justiça do Trabalho, como tem sido a atuação diante da pandemia?
O trabalho tem sido realizado de forma majoritariamente remota desde o início da pandemia, com o objetivo de preservar a vida e a saúde de magistrados, servidores, colaboradores e de todos os cidadãos que buscam a prestação jurisdicional na Justiça do Trabalho. Os maiores desafios têm sido as adaptações que precisaram ser feitas para viabilizar o trabalho remoto, por meio de plataformas virtuais para a realização das sessões de julgamento, reuniões administrativas, sessões de conciliação, etc. Outro desafio é a comunicação entre chefes e colegas, que passou a ser feito primordialmente pelos meios telemáticos, uma vez que o trabalho é prestado de forma virtual. Porém, apesar de todos os desafios, o TST garantiu um aumento de produtividade na ordem 6,3% no número de processos julgados em 2020 se comparado ao ano anterior. Isso significa que os desafios foram superados com êxito e progresso. A Justiça do Trabalho, como um todo, recebeu em 2020 diversos selos do Prêmio CNJ de Qualidade e o Tribunal Superior do Trabalho foi agraciado com o Selo Diamante, o que demonstra a excelência na gestão, planejamento, transparência da prestação jurisdicional, além dos elevados níveis de produtividade.

Houve aumento nas demandas e processos relacionados à pandemia?
Com o decorrer do ano de 2020 e até o momento de 2021 em que vivemos, houve, sim, aumento no número de demandas e processos envolvendo temas pertinentes à pandemia. Em 2020, a primeira instância recebeu 21.798 casos novos relacionados à covid-19. E foram cerca de 4.300 ações originárias na segunda instância. No TST, até o início de março, foram julgadas 114 liminares envolvendo a temática.

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