Ideias em um país desumano
Marica. Mau-caráter. Imbecil. Este é você, que está angustiado com a falta de vacinas contra uma doença que, em questão de dias, vai matar 300 mil brasileiros. Deixe de mi-mi-mi. O Brasil é um dos países que está melhor combatendo a pandemia, apesar da calamidade instalada na rede de atendimento em pelo menos 25 estados. A maior tragédia sanitária do país é uma conspiração de quem quer derrubar o governo. Como pode um governador decretar “estado de sítio”, uma prerrogativa que caberia somente ao mandatário máximo do país? Tratam-se de abusos cometidos por “projetos de ditadores”, que mandam fechar tudo. E como fica a economia?! O brasileiro está aí para enfrentar qualquer intempérie. Merece até ser estudado pela ciência. “Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”. Máscara? Enfie naquele lugar.
Qual é o problema de ignorar apelos, desprezar súplicas, minimizar o sofrimento de famílias, aglomerar-se sem qualquer preocupação com o amanhã, dar de ombros ao massacre que está em curso em hospitais país afora? O importante é preservar a liberdade — mesmo que três milhares de brasileiros percam, todos os dias, o direito à vida nas UTIs, ou sem nem chegar a elas. Antes de mais nada, é preciso proteger minha escolha voluntária de ser vacinado. A saúde coletiva é uma questão para outros resolverem, não me diz respeito.
Essas são algumas das ideias que grassam em meio à calamidade da pandemia no Brasil. Declarações absurdas, expressões chulas, campanhas difamatórias, disseminação de dados falsos ou incompletos, guerra de narrativas. É extenso o repertório negacionista que contamina o esforço coletivo de enfrentamento da crise sanitária. Em um primeiro momento, a serpente age nas redes sociais (que poderiam ser um instrumento poderoso de mobilização nacional em favor das vidas), com o intuito de inflamar extremistas, atacar cidadãos, confundir a opinião pública e manter em execução um projeto de poder. Fundada na retórica e no uso maciço de fake news, essa intenção, há tempos, causa enormes danos a pessoas, à nação. Mas há outros sinais mais preocupantes, porque desta vez envolvem instituições da República.
Em vez de se buscar o diálogo e a cooperação, fica mais deliberado, a cada dia, o esforço de forçar o conflito; disseminar a incerteza; tratar a pandemia, antes considerada uma “gripezinha”, como um palanque ou um ringue; criar pretextos para exacerbar rivalidades políticas e testar a força da democracia brasileira. A ofensiva do Palácio do Planalto contra as ações restritivas dos governadores está longe de ser uma divergência jurídica; constitui tão somente um ardil para criar um contraponto político às decisões dificílimas que os gestores de estados e municípios são obrigados a tomar. E, assim, eximir-se da responsabilidade sobre a pandemia durante a disputa eleitoral de 2022. Em outra frente, aciona-se o aparato policial para intimidar cidadãos que se manifestam politicamente. Os procurados não exibem armas, não soltam foguetes em frente ao Supremo nem ameaçam agredir ou matar nenhuma autoridade. Mas são alvo de uma tentativa canhestra de desenterrar um entulho da ditadura, que atende pelo nome de Lei de Segurança Nacional.
Nesse cenário desolador, o país, seguidamente, perde um pouco de humanidade. Dói ver, há mais de um ano, o sofrimento de brasileiros que perecem ante um vírus que, dia após dia, ganha força e se torna mais letal. Mas é doloroso, também, ver como a tragédia sanitária cria uma ferida profunda na alma do cidadão. Em meio a 290 mil mortos e apenas 5% da população vacinada, o Brasil encontra-se devastado. Órfã de uma referência institucional, a sociedade alterna surtos de ansiedade e cansaço com momentos de apatia e indiferença diante do horror causado pelo coronavírus sem controle. Para esses males, a vacina não será suficiente.
“É extenso o repertório negacionista que contamina o esforço coletivo de enfrentamento da pandemia. Ele se mostra ferozmente nas redes sociais, mas está incrustado nas instituições da República”
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