O silêncio e os inocentes
Será eloquente a participação de Eduardo Pazuello na CPI da Covid. Eloquente porque demonstrará, em alto e bom som, que o governo não tem o que defender na catástrofe sanitária que se abateu sobre o Brasil. O militar que entregou o cargo de ministro da Saúde com o legado de 280 mil mortes pela doença ouvirá uma centena de perguntas, mas não se verá na obrigação de responder. Será inquirido sobre episódios específicos, como a agonia de Manaus, quando brasileiros morriam nos hospitais por falta de oxigênio, em uma sequência trágica de descoordenação, descaso, negligência e inépcia das autoridades. Se assim quiser, poderá explicar o dito “é simples assim: um manda, e o outro obedece”, usado para justificar o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da CoronaVac pelo governo federal em outubro de 2020. Naquela ocasião, Pazuello se recuperava, no Hotel de Trânsito de Oficiais do Exército, dos efeitos provocados pelo novo coronavírus. O general soltou a célebre frase ao lado do chefe, como mostram imagens que se juntarão às cenas inesquecíveis da pandemia no Brasil. Nenhum dos dois portava máscara no encontro. Pazuello não viu problema em expor o presidente ao contágio por covid — diferentemente do que alegou ao Senado Federal este ano, quando manifestou receio de infectar algum parlamentar durante as oitivas da CPI.
Na próxima quarta-feira, o brasileiro que comandou, durante 10 meses, a pasta mais importante contra a pior epidemia que o Brasil já enfrentou estará livre de comentar qualquer ato que lhe impute alguma culpa. Ele ficará à vontade para eximir-se, por exemplo, de toda responsabilidade sobre as malfadadas negociações com a Pfizer, fracasso que impediu o governo de adquirir, ainda no fim do ano passado, milhões de vacinas da farmacêutica e de reforçar a imunização no Brasil no momento em que a Anvisa autorizasse. Pazuello poderá muito bem se esquivar, igualmente, de perguntas que busquem esclarecer o “aconselhamento paralelo”, como definiu Mandetta, que estava em curso no Palácio do Planalto. Nada a declarar sobre o envolvimento de figuras caras à presidência, como Carlos Bolsonaro, Filipe Martins e Fábio Wajngarten, nas tratativas com a multinacional.
Convém precisar, no entanto, o lugar que o general ocupa na hecatombe da covid. Não seria razoável esperar que Pazuello explicasse de maneira lógica, detalhada e convincente sua participação na tragédia. A trajetória do ex-ministro fala por si. Foram inúmeras as situações em que o Ministério da Saúde atuou de maneira desastrosa, e a CPI terá os meios suficientes para comprovar — mesmo que Pazuello jure inocência — a responsabilidade daqueles que negligenciaram a saúde dos brasileiros. Não há o que discutir sobre o militar. É evidente que ele tem culpa. Porém, do ponto de vista jurídico, isso não demandará ser tratado no Senado e, sim, posteriormente, no âmbito do Judiciário. A CPI, como bem lembrou o presidente Omar Aziz, não é tribunal. Mas é um foro importante e essencial para o Legislativo exercer seu papel constitucional de examinar atos e omissões do Executivo. Nesse sentido, acumulam-se de forma impressionante e inequívoca elementos para reforçar a convicção de que o governo brasileiro adotou, deliberadamente, uma política negacionista no combate à pandemia, independentemente do grau de envolvimento de Pazuello. As consequências deixaram marcas profundas no país em 2020, ainda o fazem no presente momento e serão visíveis por muitos anos. O salvo-conduto concedido pelo Supremo Tribunal Federal poderá proteger Pazuello, mas não escamotear as ações com fortes indícios delituosos à saúde pública que estiveram em curso nos últimos meses.
Por último, e não menos importante, há um detalhe curioso no habeas corpus a Pazuello. O autor do pedido, André Mendonça, ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, alegou a imperiosa necessidade de se preservar garantias constitucionais e evitar constrangimentos ao depoente na CPI. Enquanto ministro da Justiça, Mendonça não teve o mesmo escrúpulo ao fazer uso da Lei de Segurança Nacional, um zumbi jurídico da ditadura, para enquadrar críticos do governo Bolsonaro.
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