Política

CPI da Covid: as principais revelações e os destaques dos depoimentos até agora

Eduardo Pazuello deu o depoimento mais aguardado da CPI e disse que falas de Bolsonaro não interferiam na compra de vacinas

BBC
Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 22/05/2021 09:02
 (crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado )
(crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado )

A CPI da Covid, que busca apurar ações e omissões do governo federal na gestão da pandemia, ainda tem um longo caminho pela frente: há mais dez depoentes já convocados e uma duração prevista para um total de 90 dias — prazo que pode ser ampliado.

Se duas semanas de depoimento ainda não trouxeram à tona nenhuma informação que possa ser considerada bombástica, na avaliação de senadores e analistas consultados pela BBC News Brasil houve revelações importantes a respeito da atuação federal no último ano. Eis as principais delas:

Cartas da Pfizer ignoradas

A demora na compra da vacina da farmacêutica americana Pfizer é um dos temas mais explorados na CPI até o momento.

E o principal fato concreto em torno disso foi mencionado no depoimento do ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten, que citou uma carta de 12 de setembro enviada pela Pfizer a seis autoridades brasileiras: ao presidente Jair Bolsonaro, a seu vice, Hamilton Mourão, aos então ministros Paulo Guedes (Economia), Eduardo Pazuello (Saúde), Walter Braga Netto (Casa Civil) e ao embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster.

A carta foi ignorada por dois meses, afirmou Wajngarten — agregando que, quando tomou conhecimento do assunto, em novembro, entrou em contato com a farmacêutica e se reuniu uma vez com o executivo da empresa no Brasil, Carlos Murillo.

No dia seguinte, Murillo afirmou, em seu depoimento, que a primeira oferta da empresa, de 70 milhões de doses, fora feita em 14 agosto ao governo federal e tinha prazo para resposta de 15 dias — o governo ignorou o prazo e a oferta expirou.

Se essa oferta tivesse sido aceita, as primeiras doses da vacina poderiam ter sido entregues ainda em dezembro de 2020, afirma Murillo.

A segunda e terceira ofertas de 70 milhões de doses foram feitas em 18 e 26 de agosto, e também não foram aceitas pelo governo, segundo Carlos Murillo.

Carlos Murillo (à esq), da Pfizer, em depoimento à CPI
Reuters
Carlos Murillo (à esq), da Pfizer, confirmou, em depoimento à CPI, que ofertas iniciais da farmacêutica foram ignoradas pelo governo federal

Foi só em março deste ano que o governo assinou o acordo com a empresa, e a primeira remessa de cerca de 1 milhão de doses da vacina da Pfizer/BioNTech chegou ao Brasil no final do último mês de abril.

Murillo afirmou à CPI que os outros países fecharam o contrato de compra antes da aprovação das agências regulatórias. Nos EUA, a vacinação começou em 14 de dezembro de 2020, com aprovação emergencial pela FDA, a agência regulatória americana.

Ao depor à CPI, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello contestou: "(As cartas da empresa) foram respondidas. A resposta à Pfizer é uma negociação que começa com a proposta e termina com a assinatura do memorando de entendimento para compra. Quando nós tivemos a primeira proposta oficial da Pfizer, ela chegou com cinco cláusulas que eram assustadoras."

O ex-ministro citou exigências como a isenção de responsabilidade por efeitos colaterais, transferência do fórum de decisões sobre questões judiciais para Nova York, pagamento adiantado e não existência de multa por atraso de entrega.

As exigências são as mesmas feitas pela empresa para outros países e similares a propostas de outras empresas.

Pazuello afirmou que as "cláusulas leoninas" foram avaliadas por advogados da assessoria do ministério.

"Hoje já temos outras propostas com essas cláusulas, mas na época não havia", afirmou. "Talvez hoje possamos ouvir com um grau de normalidade. Mas a primeira vez que eu ouvi isso achei assustador. Além disso, a Pfizer trouxe a (custo de) US$ 10 dólares a dose, e nós estávamos negociando a US$ 3. Além das discussões logísticas sobre armazenamento."

Para o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), porém, "os documentos (em posse da CPI) já demonstram a demora e a má vontade" na negociação com a Pfizer.

Segundo a Folha de S.Paulo, esses documentos incluem dez emails a respeito de vacinas que foram enviados pela Pfizer e ignorados pelo governo.

Envolvimento da Secretaria de Comunicação nas vacinas

Fabio Wajngarten na CPI
Reuters
Fabio Wajngarten na CPI: 'Nunca participei de negociação (de vacinas). O que busquei sempre foi o maior número de vacinas para atender a população brasileira com uma vacina que tinha maior eficácia'

Outro ponto chamou a atenção dos senadores nas discussões com a farmacêutica: o envolvimento de políticos cuja atuação não teria, em tese, nenhuma relação com aquisição de vacinas.

Em entrevista prévia à revista Veja, Fabio Wajngarten havia dito que se envolvera na compra de imunizantes na Secretaria Especial de Comunicação (Secom) porque o processo estava "sofrendo entraves".

Em áudio tornado público pela revista, Wajngarten afirmou que havia "incompetência" no Ministério da Saúde.

No depoimento à CPI, porém, Wajngarten foi vago em relação à entrevista, dizendo apenas que teve uma reunião com a Pfizer e levou o assunto ao conhecimento de Bolsonaro "para ajudar no impasse".

"Vi por bem levar o assunto Pfizer ao presidente Bolsonaro na busca de uma solução rápida, e assim foi feito. Minha atitude proativa em relação ao laboratório produtor da vacina foi republicana e no sentido de ajudar. Nunca participei de negociação. O que busquei sempre foi o maior número de vacinas para atender a população brasileira com uma vacina que tinha maior eficácia", afirmou Wajngarten.

O senador governista Marcos Rogério (DEM-GO) opinou, em entrevista coletiva, que Wajngarten deveria ser "homenageado" por ter assumido sua responsabilidade de servidor público e tomado a iniciativa de contactar a Pfizer, em vez de "botar (o assunto) na gaveta". "O problema é que há uma sanha acusadora no âmbito do Senado, por parte da oposição, que é incompreensível", disse Rogério.

Já o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, afirmou durante o depoimento de Wajngarten que o envolvimento do ex-secretário em tema desvinculado da sua área de atuação reforça os indícios de que Jair Bolsonaro teria uma "consultoria paralela" ao Ministério da Saúde para tomar decisões relacionadas à pandemia (veja mais abaixo).

Segundo o depoimento de Carlos Murillo, quem também participou da reunião com a farmacêutica foi Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, que é vereador no Rio de Janeiro pelo partido Republicanos e não tem cargo oficial no governo federal.

Discussão para mudar a bula da cloroquina

Rejeitadas pelas agências internacionais de saúde no combate à covid-19 por sua ineficácia em tratar a covid-19 e por seus efeitos colaterais potencialmente graves, a cloroquina e a hidroxicloroquina foram constantemente sugeridas por Bolsonaro e por ações oficiais do Ministério da Saúde desde o início da pandemia.

Na última quinta-feira (20/05), Bolsonaro afirmou em uma live que voltou a usar cloroquina recentemente após sentir sintomas de covid-19: "Não vou falar o nome (do remédio) para não cair a live", disse o presidente.

O que a CPI trouxe de novo é a informação de que foi discutida, no âmbito do governo, a ideia de modificar a bula da cloroquina, medicamento originalmente voltado ao tratamento da malária.

Em seu depoimento à comissão, em 4 de maio, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou que durante sua gestão ele foi chamado a uma reunião em que "havia sobre a mesa um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), colocando na bula a indicação da cloroquina para coronavírus. E foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, (Antônio) Barra Torres, que disse não."

Barra Torres também depôs e confirmou essa tratativa, que acabou sendo rejeitada naquela mesma reunião.

"Só quem pode modificar a bula de um medicamento registrado é a agência reguladora do país (a Anvisa), mas desde que solicitado pelo detentor do registro", declarou Barra Torres.

Bolsonaro com caixa de cloroquina, em julho de 2020
Reuters
CPI trouxe à tona a informação de que houve discussões não frutíferas dentro do governo para modificar-se a bula da cloroquina (segurada acima por Bolsonaro)

O presidente da Anvisa afirmou, também, que o documento com a minuta de mudança da bula foi comentado pela médica Nise Yamaguchi, que participava da reunião.

"(Isso) provocou uma reação até um pouco deseducada minha, de dizer que aquilo (mudança de bula) não poderia ser", afirmou Barra Torres.

Nise Yamaguchi é uma das convocadas para depoimento nas próximas semanas.

A médica diz que a fala de Barra Torres "não corresponde à realidade". Ela deve comparecer na condição de convidada e não de testemunha, o que significa que não pode incorrer no crime de falso testemunho caso falte com a verdade.

Suspeita de "aconselhamento paralelo" a Bolsonaro

Os depoimentos na CPI reforçaram, entre os senadores críticos ao governo, a tese de que Jair Bolsonaro recebia um "aconselhamento paralelo" ao Ministério da Saúde no que se refere à estratégia de enfrentamento da pandemia.

Desse aconselhamento, argumentam os senadores, parecem ter saído as iniciativas de defesa da cloroquina e a ideia de imunidade de rebanho por contaminação, em vez de por vacinação. Por trás disso, está a falsa percepção de que, quanto mais gente infectada, maior seria a imunidade da população como um todo.

Embora o Ministério da Saúde nunca tenha oficialmente adotado a estratégia de imunidade de rebanho sem vacinas, Bolsonaro disse diversas vezes que a contaminação da maioria da população era inevitável e que "ajudaria a não proliferar" a doença.

"Muitos pegarão isso (vírus) independente (sic) dos cuidados que tomem. Isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde", afirmou Bolsonaro em 15 de março de 2020 à CNN Brasil.

Em abril daquele ano, Bolsonaro afirmou que "o vírus vai atingir 70% da população, infelizmente é uma realidade".

Em seu depoimento, Eduardo Pazuello afirmou ter ouvido a tese de imunidade de rebanho do deputado Osmar Terra (MDB-RS), que tem sido mencionado como um desses possíveis "conselheiros paralelos" a Bolsonaro.

Mas questionado se a estratégia foi adotada na pandemia, Pazuello respondeu que "em hipótese alguma".

Jair Bolsonaro
Reuters
Alguns depoentes da CPI afirmaram que pessoas de fora do ministério aconselhavam Bolsonaro no enfrentamento da pandemia; nomes próximos ao presidente negaram isso

Outro nome que teria envolvimento nesse suposto aconselhamento paralelo é o do empresário Carlos Wizard, que afirmou à TV Brasil que passou um mês como conselheiro do Ministério da Saúde. Pazuello, porém, negou isso.

"Carlos Wizard, por si só, propôs reunir um grupo de médicos para aconselhamento, mas eu não aceitei. Teve uma reunião de 15 minutos e não gostei da dinâmica da conversa. Não tive aconselhamento nem assessoramento de grupos de médicos."

Para o senador Otto Alencar (PSD-BA), porém, "está caracterizado com clareza a tentativa do governo, com Pazuello e o presidente (Bolsonaro), de pensar em imunidade de rebanho, (...) com esses assessores em paralelo", opina.

Em entrevista coletiva, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI, afirmou que "existia um comando no Palácio do Planalto que compreendia como estratégia para enfrentamento da pandemia a contaminação de todos, a cloroquina como solução, e a chamada imunidade coletiva. Esse comando não apostava nos meios da ciência".

Os depoimentos de Fabio Wajngarten e Carlos Murillo sugerem que esse "comando paralelo" teria tido ingerência nas negociações das vacinas, prosseguiu Randolfe.

"Temos que entender melhor quem fazia parte desse gabinete paralelo para ver, deste comando, de quem é importante pedir quebra de sigilo e a quem é importante fazer a convocação", agregou o senador.

Em contrapartida, Pazuello, Wajngarten e o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo negaram, em seus depoimentos, terem conhecimento de que houvesse redes extraoficiais de aconselhamento a Bolsonaro.

Jogo de empurra quanto à responsabilidade pela crise em Manaus

Ao falar à CPI, Pazuello voltou a responsabilizar o governo do Amazonas e o fornecimento privado pela crise em Manaus no início do ano, quando a escassez de oxigênio levou ao extremo o colapso no sistema de saúde local.

Para o senador Alessandro Vieira, um dos pontos que chamam a atenção é o fato de "a decisão pela não intervenção em Manaus ter tido a participação direta do presidente da República".

Ele se refere ao momento do depoimento em que Pazuello contou ter havido uma reunião ministerial com Bolsonaro para discutir uma possível intervenção no Estado, mas que, pelo que o ex-ministro se recorda, chegou-se à conclusão de que o governo amazonense "tinha condição de continuar fazendo a resposta" à pandemia no Estado.

Vieira diz que um dos pontos que ainda precisam ser esclarecidos - e que podem indicar omissão do governo - é a aparente recusa à oferta de um avião americano para levar suprimentos emergenciais a Manaus em janeiro.

Quando foi questionado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) sobre por que não aceitou a ajuda americana, Pazuello afirmou que a oferta não tinha chegado a ele. O ex-ministro agregou que, pelo que soube mais tarde, a oferta não seria gratuita, dando a entender que o governo brasileiro teria de pagar pela ajuda americana.

Crise do oxigênio em Manaus, em janeiro
Reuters
Crise do oxigênio em Manaus, em janeiro; Pazuello atribuiu responsabilidade ao governo do Amazonas

Nesse momento, Gama acusou Pazuello de mentir, dizendo ter em mãos um documento do próprio Ministério da Saúde que evidenciaria que a pasta tinha conhecimento sobre o caso.

Em seguida, o advogado da Advocacia-Geral da União que acompanhava Pazuello orientou-o a ficar em silêncio. "Melhor ele ficar em silêncio do que se comprometer cada vez mais. A explicação dele não bate com a explicação do ministério", respondeu o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).

'Blindagem' de Bolsonaro

Os senadores de oposição criticaram Pazuello, em seu depoimento, por supostamente blindar Jair Bolsonaro de qualquer responsabilidade pelo altíssimo número de vítimas da covid-19 no Brasil.

"Pazuello tentou fazer uma barreira de proteção ao presidente", critica Otto Alencar.

"É inacreditável ele afirmar que algo dito pelo presidente na internet não valia", agrega Alessandro Vieira - em alusão ao momento de seu depoimento em que Pazuello afirmou que as recusas públicas de Bolsonaro à CoronaVac não afetaram as decisões de compra da vacina.

Em outubro de 2020, Bolsonaro declarou que já tinha "mandado cancelar" o protocolo de intenções de compra do imunizante. Segundo Pazuello, porém, isso foi "uma posição como agente político na internet" que não interferiu em nada na discussão em curso com o Instituto Butantan, responsável pela CoronaVac.

"Uma fala na internet não é uma ordem", disse Pazuello. "Bolsonaro nunca falou para que eu não comprasse. Ele falou publicamente, mas para o ministério ou para mim, nunca falou."

Esse distanciamento em relação ao presidente ocorreu mesmo no caso do ex-ministro Mandetta, avalia o analista político Bruno Carazza, professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral. "O depoimento de Mandetta tinha um potencial explosivo, mas ele foi muito cauteloso, uma vez que é um eventual candidato (em 2022) e não quer se desgastar totalmente com o eleitor bolsonarista", diz Carazza.

Se todas as Comissões Parlamentares de Inquérito são, por natureza, instrumentos de pressão e convencimento da opinião pública, a CPI da Covid o é ainda mais por abordar um tema tão próximo à realidade de cada um dos brasileiros, prossegue o analista.

"Então é de se esperar que seja explorada ao máximo pela oposição e também pelo governo, de jogar a conta (das mortes na pandemia) aos Estados e municípios e tentar se blindar", explica.

"Depois de uma primeira fase com nomes muito aguardados (como os de ex-ministros), agora a CPI precisará não perder o foco, por uma tendência natural de desgaste da opinião pública. Teremos personagens mais coadjuvantes, então há o risco de a oposição perder o controle dos holofotes, mas também a chance de surgirem elementos novos para sacudir a história", conclui Carazza.


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