O alto Comando do Exército enfrenta um dilema: punir o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por sua participação em ato em apoio ao presidente da República e bater de frente com Jair Bolsonaro, ou fazer vista grossa para sua infração disciplinar e dar um sinal à tropa de tolerância à indisciplina e à manifestação política.
Para dificultar a equação, o presidente, como comandante supremo das Forças Armadas, tem a prerrogativa de anular uma eventual punição. Caso isso ocorra, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) irá à Justiça pedir que Pazuello seja punido, já anunciou o presidente da instituição, Felipe Santa Cruz.
Uma decisão do comando do Exército é aguardada para os próximos dias e poderá ser determinante para estimular ou reverter a crescente politização dos quartéis, afirmam especialistas em Forças Armadas ouvidos pela BBC News Brasil.
A hipótese de "anarquia" militar caso o ex-ministro passe incólume foi levantada pelo próprio vice-presidente, general Hamilton Mourão. "A regra tem que ser aplicada para evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças. Assim como tem gente que é simpática ao governo, tem gente que não é", ressaltou ele, na semana passada.
Dias antes, em 23 de maio, o ex-ministro da Saúde subiu em um carro de som ao lado de Bolsonaro no Rio de Janeiro, agradeceu o apoio do público e elogiou o presidente.
A atitude desrespeitou o Regulamento Disciplinar do Exército, que proíbe o militar da ativa de se manifestar publicamente a respeito de assuntos de natureza político-partidária sem que esteja autorizado previamente.
Para o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo (PSB), que ocupou o cargo no governo Dilma Rousseff, a punição a Pazuello é necessária para proteger dois princípios fundamentais para o funcionamento das Forças Armadas: disciplina e hierarquia.
"Se o general pode subir em um palanque para fazer uma arenga política em favor ou contra quem quer que seja, o que vai impedir que um tenente, um sargento ou um cabo faça o mesmo?", questiona Rebelo.
Ele diz que as Forças Armadas não podem ter atuação política porque são uma instituição armada com função constitucional de defender a pátria.
"Caso contrário, você teria um ator político armado disputando espaço com os demais atores, partidos, sindicatos, ONGs, associações", explica.
"Então, seria uma deformidade completa na vida política do país a presença de um ator disputando espaço com outros atores da vida civil com essas condições: tendo quartéis, fuzis, tanques, aviões, navios de guerra", reforça.
Por isso, defende Rebelo, a punição de Pazuello "seria importante como gesto educativo, pedagógico, para dizer que as Forças Armadas não podem ser contaminadas pelo espírito das disputas político-partidárias".
Em mais um exemplo da politização dos quartéis, o jornal Estado de S. Paulo noticiou nesta quarta-feira (02/06) que o 3º sargento Luan Ferreira de Freitas Rocha participou em 14 de maio de uma live do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), em que reclamava do tempo de progressão na carreira militar.
Ele é o 3º sargento de Material Bélico da ativa e trabalha na Companhia de Comando da 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada, com sede em Cascavel, no Paraná.
"Uma live de um deputado do PSL é uma manifestação política. Então, existe uma tendência de continuidade dessa participação política se não houver punição severa, tanto ao Pazuello como ao sargento", defende o estudioso das Forças Armadas Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB)
"E como punir o sargento se não punirem o Pazuello?", questiona ainda.
"Recado a Bolsonaro"
Na visão de Cortinhas, uma punição a Pazuello é necessária não só como recado contra a atuação política de militares, mas também como uma mensagem ao próprio Bolsonaro.
Na sua avaliação, o comando das Forças Armadas tem sido "corresponsável" pela politização dos quartéis, na medida em que não rechaça atitudes do presidente, como falar em "meu Exército" e "minhas Forças Armadas".
Outro exemplo dessa "corresponsabilidade", diz, foi ter autorizado cerca de seis mil militares da ativa e da reserva a ocupar cargos civis da administração federal, incluindo o comando de alguns ministérios.
"Eu vejo como essencial uma punição severa a Pazuello justamente para demonstrar ao Presidente da República que há limites (ao uso político das Forças Armadas). Esses limites ainda não foram mostrados, pelo contrário", critica Cortinhas.
"A responsabilidade é do Bolsonaro, mas não é só dele. A escolha de voltar à política foi uma escolha dos militares, que eles fizeram a partir de um cálculo (dos benefícios que teriam)", afirma ainda.
A adesão ao governo Bolsonaro deu uma série de ganhos aos militares desde 2019: o orçamento da Defesa cresceu apesar da crise fiscal; a remuneração foi elevada como compensação à reforma da previdência; e mais recentemente o presidente derrubou a regra que limitava os salários de servidores ao teto constitucional de R$ 39,3 mil, permitindo que civis aposentados e militares da reserva recebam mais que esse valor ao ocuparem cargos no governo (acumulando os novos salários com a aposentadoria).
As Forças Armadas têm servido como importante base de apoio político a Bolsonaro, nota o professor. Essa relação, porém, tem sofrido desgastes, justamente pela resistência recente de altos oficiais em ceder ainda mais às demandas do presidente.
Por causa disso, no início de abril, foram demitidos o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e o comando das três Forças (Exército, Aeronáutica e Marinha), numa troca simultânea inédita da alta cúpula militar.
O atual ministro da Defesa, general Braga Netto, era antes chefe da Casa Civil de Bolsonaro, sendo visto como aliado político próximo do presidente. Já o atual comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, tem fama de ser mais independente, o que alimenta as expectativas de que Pazuello não escapará de alguma punição.
Um complicador para a decisão de Nogueira é o fato de que o presidente da República poderá anular uma punição ao general.
Juliano Cortinhas, porém, considera que esse seria um passo arriscado para Bolsonaro, já que ampliaria seu desgaste com o comando das Forças Armadas.
"É possível ele anular uma punição administrativa. Por outro lado, ele próprio estaria rompendo ou, pelo menos, esgarçando sua relação com os militares. Politicamente, ficaria uma manobra cara para ele também", acredita.
O professor considera que mesmo sendo chefe supremo das Forças Armadas, Bolsonaro não poderia ter contado com a participação de Pazuello ao seu lado na manifestação do Rio de Janeiro porque não se tratava de uma ato de gestão pública ou uma atividade militar.
"Era um ato político, não era um ato de gestão pública em que ele estava construindo algo benéfico ao nosso país. Pelo contrário, eles estavam em meio a uma aglomeração, os dois sem máscara, descumprindo regras sanitárias", criticou.
Pazuello ganhou novo cargo no Palácio do Planalto
Contrário a uma punição ao seu ex-ministro, Bolsonaro deu sinais claros de apoio a Pazuello nesta semana ao nomear o general para um cargo no Palácio do Planalto. Ele exercerá a função de secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Por não se tratar de um cargo de ministro, a função não lhe dá foro privilegiado. A atuação de Pazuello como ministro da Saúde é hoje alvo de investigação no Ministério Público Federal, na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid e no Tribunal de Contas da União.
À frente da pasta por cerca de dez meses até março deste ano, sua gestão não foi capaz de controlar a pandemia no Brasil. Mais de 465 mil pessoas já morreram infectadas por coronavírus no país.
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