As 4 linhas do jogo
Este governo gosta de dizer, com a boca cheia, que “joga dentro das quatro linhas da Constituição”. Os fatos, contudo, insistem em contradizer o discurso daqueles que juram respeitar o ordenamento jurídico sobre o qual repousa a democracia brasileira. Durante a pandemia, por exemplo, tornaram-se corriqueiras as cenas de desrespeito às mais elementares regras de prevenção à covid-19 — uso de máscara e distanciamento social — por parte do presidente da República, de integrantes do governo e de seguidores do bolsonarismo. E foi precisamente em um desses episódios lamentáveis que ocorreu um acinte para aqueles que prezam valores como disciplina, hierarquia e obediência. Eis que, no alto de um carro de som e em meio a uma motocada, o general da ativa Eduardo Pazuello se apresenta, sorridente e desinibido, ao lado de Jair Bolsonaro. Para o comando do Exército, o ato do militar não constituiu fato grave, que merecesse nem ao menos uma reprimenda. Arquive-se. Esqueçam o que aconteceu no Rio de Janeiro. Assim como o bordão “um manda, o outro obedece” significa coisa de internet, a participação de um general da ativa em um comício nada mais é do que um descuido por parte de quem jurou defender a honra da farda.
O perdão a Pazuello desmoraliza o Exército porque transgride o princípio elementar do direito de que todos são iguais perante a lei. Ao concluir que o general não cometeu qualquer infração ao participar de um ato político, o comando da Força indica que o respeito à disciplina vale para todos, menos para alguns. Em uma instituição militar, manifesta de maneira inequívoca uma tolerância com a insubordinação, a indisciplina. A solução encontrada pelo Exército pode até evitar algum desgaste com o presidente da República, mas provoca danos muito mais sérios e duradouros à corporação. Joga por terra o mantra de que as Forças Armadas são uma instituição de Estado. Infelizmente, Pazuello e aqueles que toleram seus atos estão a indicar que um militar é sujeito às vontades do governante, e não aos desígnios da lei. Ou, repetindo o bordão, que um manda e outro obedece, e que a lei não passa de letra morta. Aqueles que veem em Pazuello um mal menor desconsideram uma evidência que ficará para a história. Foi um militar da ativa, um general do Exército, que comandou o ministério mais importante do país quando o Brasil chegou a praticamente 280 mil mortes pela covid em março deste ano. Não bastasse essa marca indelével, o militar da ativa mentiu despudoradamente na comissão parlamentar de inquérito que apura as responsabilidades da pandemia no país. Pelos seus atos foi agraciado com um cargo no Palácio do Planalto e, após cometer infração disciplinar e violar o estatuto militar, não recebeu qualquer punição. Essa sequência de fatos diz menos sobre Pazuello e mais sobre a participação de militares em cargos civis da administração pública na redemocratização brasileira.
O gosto pela transgressão também está patente em outros episódios, com ou sem a participação direta de Pazuello. As evidências cada vez mais sólidas de um “gabinete paralelo” comprovam o apreço pela atividade subterrânea, às escuras, nos bastidores do Palácio do Planalto. No momento em que o governo federal precisava emitir uma mensagem única e inequívoca, respaldada pela ciência, o Palácio do Planalto se tornou o epicentro de um núcleo negacionista, formado por gente sem qualquer credibilidade ou simplesmente ignorante para tratar do problema mais sério a afligir a nação brasileira. A cada dia, a cada depoimento, a cada vídeo revelado consolida-se a convicção de que o governo agiu deliberadamente para buscar soluções ineficazes no combate à pandemia e, por conseguinte, minando os esforços para obter a defesa mais eficaz contra o novo coronavírus: a vacina. “Jogar dentro das quatro linhas da Constituição” significa, também, zelar pelos direitos do cidadão brasileiro, entre eles o direito à vida e à saúde. Nesse quesito, são abundantes os indícios de que o governo federal negligenciou as medidas necessárias para impedir uma calamidade que, nos próximos dias, chegará à impressionante marca de 500 mil mortos.
Paralelamente às transgressões legais cada vez mais acintosas cometidas pelo governo Bolsonaro, é preciso considerar uma preocupação moral nesse conjunto de acontecimentos. Desde Maquiavel, moral e política não se misturam, mas esse questionamento se torna pertinente na medida em que a conduta moral constitui, ao menos no discurso, um componente importante do bolsonarismo. É certo que, no Brasil de 2021, discutir a moralidade dos governos é exercício para tolos. Mas, em pouco mais de dois anos, o chefe do Executivo e seus seguidores manifestaram, progressivamente, o descompromisso com valores morais, como transparência e respeito ao próximo. Nos últimos meses, têm demonstrado, também, apreço em ultrapassar a linha da lei.
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