Crônica da Cidade

por Severino Francisco
postado em 12/06/2021 23:18

Celebração do amor

Não importa que o Dia dos Namorados tenha sido ontem. As coisas boas da vida merecem ser celebradas todos os dias, principalmente neste momento em que somos assolados pelos adoradores da morte. Por isso, peço licença para tocar no delicado tema, que segundo o poeta, move o céu e as outras estrelas. Mas eu queria falar daquela espécie de namoro que se alonga em amor, em casamento e em cumplicidade; e se depura ao longo dos anos.


É esse o caso do poeta Nicolas Behr e da sua mulher e musa. Ele faz uma declaração de amor rasgada a ela no livro Alcina, (sim, revisão, com vírgula). O nome da musa está escancarado em letras garrafais no título; e a fotos de Alcina e de Behr repontam no fim do belo texto da orelha, assinado por Ana Miranda. Mas que ninguém espere a superexposição do BBB.


Behr se esquiva, a todo momento, do mero exibicionismo, com fintas modernistas desconcertantes de humor, como se fosse um Garrincha candango de pernas tortas: “se eu te amasse/ escreveria poemas/pra você/se eu te amasse/reuniria os poemas em um livro/se eu te amasse/o título do livro teria o teu nome”, escreve o poeta para apresentar o livro Alcina,


O romantismo de Behr é gauche, excêntrico e torto. No entanto, a figura da musa paira, explícita ou implícita em todas as situações: “E ela, a deusa,/se fez carne/e a sua carne me habita”. Não idealiza nada, mas arranca a poesia das situações mais triviais: “Aprendi com Alcina/que casar/é deixar de sofrer sozinho/para sofrer junto”.


É uma declaração de amor, mas oblíqua e dissimulada. Os poemas colocam em cena a vida cotidiana de um casal, com a luta pela sobrevivência, os encontros, os desencontros, os momentos de intimidade e os embates das diferenças entre homem e mulher: “Niki, vem pra cama/não posso/estou escrevendo/um poema erótico para você”.


Tudo é perpassado por um fio de humor, ironia e autoironia deliciosos. Para Behr, humor se confunde com amor: “O meu amor/por ti acabou/a indiferença domina/o descuido impera/grassa a má vontade/cada um procura/um novo amor/que tal o meu?”.


No início de sua carreira de poeta, critiquei duramente a ele e a sua geração. Agradava-me a linguagem brutalista desarraigada da fala cotidiana, mas me irritava o culto da ignorância de algumas vertentes da poesia marginal. Behr afirma que o poeta Francisco Alvim alfabetizou a poesia marginal.


Não sei, pode ser, Chico deve ter alertado que a linguagem coloquial de Oswald de Andrade, de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond é uma tecnologia muito sofisticada. Behr é um poeta instintivo, intuitivo e espontâneo. Mas a poesia dele se depurou; da precariedade, fez uma força. Antes, ele fazia poema-piada; agora, faz piada-poema, blague impregnada de lirismo, para a gente ler e reler: “Sofisticar o poema/enfeitar o poema/o amor não quer/amor não quer/poema floreado/quer flores”.


Na verdade, ao falar de Alcina, Behr fala sobre o amor. É uma relação entre seres imperfeitos, humanos, demasiados humanos, como somos todos nós. Mas, na sua imperfeição, ela desperta a perfeição do amor: “Não preciso da poesia/tenho Alcina/estamos aqui para fazermos/felizes aqueles que amamos”.

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